No ano do centenário da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da primeira convenção sobre as horas de trabalho na indústria, (re)surge o desafio: a quem pertence – ou deve pertencer – a soberania sobre o tempo de trabalho? Ao trabalhador? Quais são os limites?
No passado dia 11 de março, a OIT publicou o relatório “Trabalho para um futuro melhor”, no qual propõe uma “agenda para o futuro do trabalho centrada no ser humano”. Esta renovação do contrato social assenta em três pilares de ação: (i) aumentar o investimento na capacidade das pessoas; (ii) aumentar o investimento nas instituições do trabalho; e (iii) aumentar o investimento no trabalho digno e sustentável.
O tema da soberania sobre o tempo emerge sob o desígnio de reforço do investimento nas instituições do trabalho, tendo em conta dois interesses (aparentemente) incompatíveis: (i) autonomia dos trabalhadores na escolha do horário de trabalho; e (ii) flexibilidade temporal adaptada às necessidades dos empregadores. Sem prejuízo do papel conformador – e, por vezes, dinamizador – da legislação, é no palco do diálogo social, nas duas diversas vertentes, que devem ser estudados, discutidos, implementados e avaliados mecanismos inovadores que se adaptem aos interesses dos empregadores e trabalhadores em determinado sector de atividade ou profissão.
Neste contexto, não devemos desconsiderar o risco de diluição da fronteira entre o trabalho e a vida pessoal e, desse modo, de aumento do tempo de disponibilidade para o trabalho. O novo contrato social não deve levar ao enfraquecimento da muralha que separa os momentos pessoais das ocasiões laborais. Ao invés, deve abrir portas, de dupla via, que melhorem a circulação das diferentes vertentes da personalidade dos trabalhadores (v.g. profissional, pai/mãe e cidadão).
O ideal de soberania pode transmitir uma falsa representação da realidade, designadamente se a tecnologia não for acompanhada de balizas que evitem a redução do tempo de vida útil não profissional e afastem os riscos de “pobreza de tempo”.
Estas balizas implicam um hodierno equilíbrio entre o controlo dos tempos de trabalho e a produtividade. Emergem, assim, encargos burocráticos, administrativos e tecnológicos para empregadores e trabalhadores, bem como novos desafios à privacidade e à proteção de dados pessoais.
O direito a desligar digitalmente é um dos caminhos em análise. Os empregadores serão chamados a criar instrumentos tecnológicos para impedir as comunicações fora dos horários (habituais) de trabalho. É uma medida importante, visto que frequentemente utilizamos um único smartphone, onde agregamos várias contas de e-mail, pessoais e profissionais. Não raras vezes, somos inadvertidamente confrontados com questões profissionais, enquanto procuramos um e-mail de um familiar ou amigo ou quando o nosso equipamento nos envia uma “notificação”. O nosso cérebro não tem (ainda) o engenho para bloquear estes estímulos profissionais e, mesmo sem o desejarmos, retomamos psicologicamente ao local e ao tempo de trabalho, prejudicando o descanso, a recuperação física e psicológica e a integração na vida pessoal e familiar.
As ferramentas que bloqueiam o tráfego de dados fora do horário de trabalho serão, em princípio, bem-vindas. Contudo, devemos esperar uma enxurrada de e-mails no início de cada jornada de trabalho, o que pode aumentar o stress laboral. Por outro lado, as comunicações urgentes devem ser devidamente acauteladas. Fica, por isso, em aberto a possibilidade de o empregador ou dos colegas de trabalho utilizarem os contactos pessoais para fazerem chegar mensagens profissionais e, desse modo, criar brechas na barragem que se pretende criar entre o mundo do trabalho e as restantes vertentes da vida real.
A robótica, a inteligência artificial e a disrupção tecnológica e empresarial marcam o ritmo e orientam o futuro do mercado de trabalho. A substituição do homem pela realidade virtual é uma ameaça – ou um desafio – sério. Contudo, não podemos adicionar a estas incertezas os problemas – a prazo, intransponíveis – da demografia. Por isso, a conciliação da vida pessoal e profissional é um repto que temos de responder no debate sobre o futuro do trabalho e, acima de tudo, da sociedade.
David Carvalho Martins | Jornal Dinheiro Vivo