A relação de trabalho assenta num vínculo colaborativo, com caráter fiduciário e intuito personae. Quer isto dizer que o contrato de trabalho, enquanto vínculo pessoal, é sensivelmente marcado por uma intensa confiança mútua das partes.
Com o decorrer do tempo, porém, este vínculo tende a ser testado pelas novas tecnologias e tendências socioculturais: como exemplo mais recente, o atual paradigma dos “memes em contexto digital”, em especial nas redes sociais (que já tivemos oportunidade de abordar em “Os riscos laborais das redes sociais” e “Trabalho e Facebook: relações perigosas”).
Tem-se por “meme”, segundo o Dicionário de Oxford, uma imagem, vídeo, texto, etc., que é transmitido muito rapidamente entre utilizadores de internet, frequentemente com pequenas alterações que o tornam humorístico e/ou jocoso (tradução livre).
A utilização das redes sociais e a criação de “memes” relacionados com o empregador e/ou com a empresa (em particular, quando tenham caráter difamatório ou ofensivo) faz (res)surgir a tensão entre o direito ao bom nome, por parte do empregador, e o direito à liberdade de expressão e opinião do trabalhador enquanto trabalhador-cidadão (art. 14.º do Código do Trabalho).
A relação de trabalho não é, evidentemente, impermeável a estes fenómenos. Em território australiano, surgem-nos notícias de um trabalhador que fez uma piada ou fez um “meme” envolvendo a sua entidade empregadora.
No caso australiano, o trabalhador estabeleceu uma associação entre a entidade empregadora (BP) e a personagem histórica de Hitler, a discursar (com legendas adulteradas) no filme “Downfall”, que partilhou num grupo fechado do Facebook (não obstante, o meme foi partilhado entre colegas de trabalho). Logo após o conhecimento da empresa visada, o trabalhador foi despedido. Volvidos dois anos, o mesmo trabalhador conseguiu, contudo, obter uma sentença favorável, tendo o Tribunal decretado a ilicitude do despedimento ilícito e condenado a entidade empregadora na reintegração do trabalhador no seu posto de trabalho e, ainda, no pagamento dos salários que deixou de receber desde o despedimento, juntamente com bónus e plano de reforma complementar.
Será possível perspetivar um caso semelhante a ocorrer em Portugal? Como seria este decidido?
A jurisprudência nacional é bastante rica em temas como o exercício da (pretensa) liberdade de expressão em contexto de redes sociais e da separação entre a crítica e a difamação/injúria: a título de exemplo, veja-se o Ac. do TRL de 24.09.2014 (Jerónimo Freitas), proc. 431/13.6TTFUN.L1-4, no qual se decidiu que a partilha de uma mensagem difamatória da entidade empregadora entre “amigos” do Facebook não garante, nem permite razoavelmente assegurar, a confidencialidade/reserva da mesma, atendendo ao amplo alargado de “amigos” e à fácil possibilidade de partilha, para terceiros, de conteúdos na rede social; e, mais recentemente, o Ac. do TRE de 28.03.2019 (Paula do Paço), proc. 747/18.5T8PTM.E1, em que a Relação considerou que as mensagens emitidas pelo trabalhador num grupo privado e fechado do WhatsApp, que chegaram ao conhecimento da empregadora, por via indireta, uma vez que não era destinatária das mesmas, nas concretas circunstâncias apuradas e na especifica situação dos autos, não poderiam ser utilizadas em sede de procedimento disciplinar, por se tratarem de comunicações pessoais e privadas.
O caso do meme, diversamente dos casos ora citados, contém a particularidade de bulir com uma sensibilidade histórica profundamente marcada por um passado avassalador e triste no caminho da humanidade (Holocausto e a perseguição Nazi), mediante a associação da figura do empregador a uma figura de autoridade ao “protagonista” desse passado.
Até que ponto, o momento de diversão ou tom jocoso não passa a ofensivo e a uma paródia intolerável? Até que ponto este ato não se revela ilícito, culposo, um verdadeiro atentado ao bom nome do empregador que coloca em causa, de modo irreparável, a confiança das partes que se revela inexigível a manutenção do vínculo? Haverá justa causa para despedimento?
Outras questões poderão ser levantadas: (i) qual o abalo da imagem que a empresa enfrenta por ser associada a um regime nazi?; (ii) quererá o trabalhador expressar a sua crítica de que existe uma política de excessiva autoridade ou de cumprimento de ordens “cegamente”?; (iii) para que lado tomba a balança, para a vitória dos direitos dos trabalhadores na Economia Digital ou para o excesso de paródia e efetivo dano na imagem e confiança da empresa na “era do politicamente correto”?; (iv) se, ao invés de ser direcionado ao empregador, for diretamente voltado para um colega de trabalho, poderá existir assédio moral horizontal?; (v) e se, ao invés de serem colocadas legendas adulteradas, o trabalhador utilizar uma aplicação de deepfake (vulgo, técnica de manipulação de imagens e sons) para adulterar o próprio áudio ou cara da personagem Hitler, com a cara ou áudio do empregador ou colega de trabalho?
Uma análise casuística parece-nos imprescindível, sendo sempre necessário indagar, de forma a avaliar o (eventual) grau de lesão do bom nome, qual a rede de pessoas que tem acesso aos conteúdos adulterados. Em qualquer caso, esta análise impõe a ponderação da natureza do conteúdo e da qualidade (bem como, das particularidades) dos sujeitos que são incluídos. É, certamente, um fenómeno a acompanhar nos tempos futuros.
Luísa S. Pereira | Tiago Sequeira Mousinho | DCM LAWYERS