A matéria de tempo de trabalho configura um dos âmagos da dogmática juslaboralista onde a controvérsia se afigura constante. A adoção de um conceito dicotómico na Diretiva 2003/88/CE, de 4 de novembro e a necessidade de ponderação de interesses relacionados com a conciliação da vida profissional e pessoal, com a saúde e com a valorização do descanso são e serão, provavelmente, sempre razão suficiente para tal.
Apesar destas dificuldades, o Tribunal de Justiça da União Europeia tem procurado concretizar os conceitos presentes na Diretiva que, enquanto conceitos da União, reclamam uma aplicação uniforme. Com este propósito têm sido definidos critérios para a qualificação das situações como tempo de trabalho ou como tempo descanso. Sobre esta jurisprudência, critérios e noções adotados vide Tempo de trabalho, período de prevenção e limites? – considerações sobre o Acórdão do TJUE, de 9 de março de 2021.
Para este efeito, e com interesse delimitado, recordamos apenas que têm sido três os critérios apontados para verificar se em concreto estamos perante tempos de trabalho ou tempos de descanso:
- Obrigação de o trabalhador estar fisicamente no local determinado pelo empregador (incluindo quando esse local não é o lugar onde exerce habitualmente a sua atividade profissional);
- Uma disponibilidade constante para exercício de funções e;
- A necessidade de o trabalhador estar no exercício das suas funções.
Ora, o acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 28 de outubro de 2021 (C. Lycourgos), Proc. C-909/19 chama, precisamente, à colação esta problemática e analisa em particular a situação de participação do trabalhador em formação profissional.
Relativamente à questão prejudicial suscitada pelo órgão jurisdicional romeno, observamos um bombeiro em regime de contrato de trabalho que exerce funções enquanto chefe de departamento de prevenção a tempo inteiro – consubstanciando-se em 8 horas diárias de trabalho, 40 horas semanais prestadas o qual foi instado a frequentar uma formação.
Com efeito, perante uma situação em que o trabalhador lhe viu ministrada uma formação fora do horário de trabalho, fora do local de trabalho e sobre a qual não exerce funções, questionou-se: Deve esta formação enquadrada como tempo de trabalho e por isso sujeita ao direito ao descanso previsto na Diretiva?
Repare-se que como seria expectável, o TJUE recorreu ao que já antes havia qualificado. Isto é, que os elementos característicos do conceito de «tempo de trabalho» assentam na factualidade do trabalhador ser obrigado a estar fisicamente presente no local determinado pela entidade patronal e de aí se manter à disposição desta última para poder prestar imediatamente os seus serviços em caso de necessidade.
Sumariamente, entendeu o Tribunal que tendo a empregadora promovido um contrato de formação profissional com o trabalhador e uma empresa externa, encontrava-se preenchido o requisito do local de trabalho e da disponibilidade do trabalhador. Do mesmo modo, considerou- se também preenchido o critério relacionado o exercício de funções, muito embora, aqui, com um âmbito de interpretação mais alargado do que na jurisprudência anterior. Isto é, embora a atividade realizada pelo trabalhador na formação profissional fosse distinta da realizada no âmbito das suas funções habituais, o facto de a formação profissional ser da iniciativa da entidade empregadora justificaria, por si, o preenchimento do critério uma vez que o trabalhador estaria sujeito às instruções daquela durante a formação profissional.
Na senda desta argumentação, apontou ainda o Tribunal para a necessidade de verificação da máxima proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores. Nesta medida, considerou que lhes devia ser permitido beneficiar de períodos mínimos de descanso e explicou ainda que as disposições da Diretiva não poderiam ser objeto de interpretação restritiva – porquanto estes poderiam levar à imposição ao trabalhador de formação fora do período normal de trabalho e do benefício do direito ao descanso suficiente.
E em Portugal? Como se encontra regulada a matéria? À semelhança da Diretiva, o Código do Trabalho adotou um critério binário, considerando tempo de trabalho o que não for qualificado como tempo de descanso e vice-versa. Por sua vez, a matéria relativa à formação profissional encontra-se regulada nos artigos 130.º e seguintes e nada prevê sobre a realização de formação fora do horário de trabalho. Em face do exposto entendemos que não resulta, do regime português qualquer proibição para a realização de formação fora do horário do trabalho ou mesmo em dia de descanso. Não obstante o referido há, contudo, que notar que se assim ocorrer deve ser convocado o regime de trabalho suplementar: i) se a formação ocorrer fora do horário de trabalho em duas horas e; ii) se prestado em dia de descanso semanal.
Sobre a noção de tempo de tempo de trabalho, e sobre a interpretação dos critérios que a vêm concretizando trará, certamente, o TJUE mais novidades.
Inês Delgado | Francisco Salsinha | DCM | Littler