Os acidentes de trabalho, em especial, acidentes in itinere, são uma matéria com pano para mangas e que tem sido alvo de alguma controvérsia na nossa jurisprudência. Sobre ela tivemos oportunidade de refletir aqui, vide Acidente a caminho dos avós?; Acidentes de percurso: responsabilidade laboral?; Acidentes de trabalho de trabalhadores independentes: a mesma luta?; Se sair do carro a meio do trânsito e sofrer um acidente, existe acidente de trabalho?).
No início do ano, o Tribunal da Relação de Guimarães deixou vertido o entendimento acolhido em relação a esta matéria no Ac. TRG de 06.02.2020 (Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso) proc. n.º 3157/16.5T8VCT.G1, ao considerar como acidente de trabalho, o acidente ocorrido no logradouro da moradia da trabalhadora sinistrada.
Usando a lógica de proteção do trabalhador, o Tribunal asseverou que o Legislador tem vindo a evoluir no sentido da socialização do risco. Argumenta, para o efeito, que a atual redação da lei comporta a interpretação de que o trajeto casa – trabalho, abarca todos os espaços exteriores à habitação do sinistrado, mesmo que estes não estejam na via pública ou não sejam espaços comuns.
Também parece ser este o entendimento do Tribunal da Relação do Porto que, no passado dia 18.05.2020, no Ac. TRP de 18.05.2020 (Paula Leal de Carvalho), proc. nº. 5361/18.2T8VNG.P1, classificou como acidente de trabalho aquele que ocorreu quando a trabalhadora, ainda dentro da sua residência, caiu das escadas que dão diretamente para a garagem onde se encontrava o seu veículo automóvel. O Tribunal afirmou que um acidente, para ser considerado como acidente in itinere, não tem obrigatoriamente de acontecer na via pública, bastando que ocorra entre o trajeto que liga a habitação do sinistrado e as instalações do local de trabalho desde que tal trajeto seja o normalmente utilizado e durante o período normalmente gasto pelo trabalhador.
Por sua vez, o Tribunal da Relação de Lisboa parece ter seguido a mesma linha de fundamentação, afirmando-se no Ac. TRL de 12.02.2020 (Manuela Fialho), proc. n.º 1189/16.2T8BRR.L1-4, ser acidente de trabalho o acidente ocorrido no logradouro de uma moradia, quando já havia sido transposta a porta de casa e se desciam os degraus em direção ao local de trabalho. À semelhança da posição acolhida pelo Tribunal de Guimarães, será suficiente que se transponha a porta principal e que tal transposição tenha como fim a deslocação para o local de trabalho, no tempo normalmente utilizado para esse mesmo fim. Para a referida fundamentação, também se aludirá ao tipo de lesão ocasionada pelo acidente. No caso, a trabalhadora torceu o pé, o que terá sido considerada uma lesão plausível de ocorrer, quando se desce as escadas do logradouro da moradia, iniciando o trajeto para o local de trabalho, depois de ultrapassada a porta de saída.
Por tudo o que se deixou refletido, podemos salientar que a jurisprudência, de forma uniforme (sobretudo desde o Ac. STJ de 18.2.2016 (Ana Luísa Geraldes), proc. n.º 375/12.9TTLRA.C1.S1), tem caminhado no sentido de entender como acidente de trabalho in itinere, aquele que ocorra na propriedade privada dos trabalhadores, se (i) o mesmo ocorrer quando trespassada a porta principal da residência, a qual dê acesso a logradouro ou a espaço comum, (ii) que tal ação pressuponha a deslocação para o local de trabalho e (iii) ocorra, ainda, dentro da janela temporal normalmente utilizada para essa deslocação.
Embora a lei não refira via pública ou espaços comuns, admitir a existência de acidentes de trabalho em espaços que são, na sua totalidade, controlados pelo trabalhador, será extravasar o sentido da mesma? A atual lei, Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro (LAT) nos seus artigos 8.º e 9.º não contém qualquer previsão similar à que existia previamente na alínea a) do número 2 do artigo 6º do revogado Decreto-Lei n.º 143/99, de 30.04
Considerar o espaço privado do trabalhador, esfera de risco própria deste a que sempre se exporá, como parte do trajeto, poderá levar à generalização da qualificação do acidente como acidente de trabalho in itinere?
Joana Guimarães | Ana Amaro | DCM LAWYERS