O Regulamento (EU) 2024/1689 de 13 de Junho, que estabelece regras harmonizadas sobre a inteligência artificial, é, provavelmente, o ato comunitário mais ambicioso e exigente dos últimos tempos. O seu impacto no acervo normativo europeu é avaliável a partir do facto de que ele implica a alteração de outros seis regulamentos e de três diretivas relativamente recentes. O volume das exigências funcionais que agora se deparam à estrutura da União, no sentido de tornar efetivas as regras tendentes a enquadrar e controlar o fenómeno, resulta claramente do facto de ter sido criada para o efeito uma nova unidade orgânica — o Gabinete Europeu da IA — no âmbito da Direção-Geral para as Redes, Conteúdos e Tecnologias de Comunicação da Comissão Europeia.
Essa nova unidade, que pretende assumir-se como uma espécie de autoridade reguladora a nível europeu, tem estado a recrutar, aceleradamente, efetivos altamente qualificados, especializados nas tecnologias da inteligência artificial. Ao mesmo tempo, é visível a intenção de estimular os Estados Membros a criarem, eles próprios, estruturas reguladoras do mesmo tipo.
O texto do Regulamento é assustador. Ocupa nada menos de 195 páginas do Boletim Oficial, das quais uma boa parte é ocupada por infindáveis considerandos – úteis, de qualquer modo, para a compreensão dos propósitos do legislador europeu a este respeito. A parte preceptiva é constituída por 113 artigos mais 13 anexos. Não é difícil prever que seja necessário um tempo dilatado só para que os inúmeros destinatários desta regulamentação acedam a um nível eficaz de entendimento.
A principal virtude do Regulamento europeu consiste talvez no facto de identificar áreas de aplicação da IA, hierarquizando-as com base nos riscos envolvidos em cada uma delas.
Desde logo, são proibidos vários tipos de utilizações de sistemas de IA, nomeadamente: os que impliquem o uso de “técnicas subliminares que contornem a consciência de uma pessoa, ou técnicas manifestamente manipuladoras ou enganadoras, com o objetivo ou o efeito de distorcer substancialmente o comportamento de uma pessoa ou de um grupo de pessoas, prejudicando de forma considerável a sua capacidade de tomar uma decisão informada”; os que visem “a avaliação ou classificação de pessoas singulares ou grupos de pessoas durante um certo período com base no seu comportamento social ou em características de personalidade ou pessoais, conhecidas, inferidas ou previsíveis”, com possíveis consequências desvantajosas para essas pessoas; os que se destinem a “avaliar ou prever o risco de uma pessoa singular cometer uma infração penal”, com base exclusivamente na definição dos seus perfis ou na avaliação dos seus traços e características de personalidade; e várias outras, pormenorizadamente descritas.
Depois, são caracterizadas as áreas de aplicação de IA que implicam “risco elevado “, isto é, “um risco significativo de danos para a saúde, a segurança ou os direitos fundamentais das pessoas singulares”, nomeadamente influenciando de forma significativa o resultado da tomada de decisões. No Anexo III do Regulamento são especificados os domínios em que podem ocorrer esses riscos: utilização de dados biométricos, quando legal; infraestruturas críticas: gestão e controlo de infraestruturas digitais críticas, do trânsito rodoviário ou das redes de abastecimento de água, gás, aquecimento ou eletricidade; educação e formação profissional; emprego, gestão de trabalhadores e acesso ao emprego por conta própria; acesso a serviços privados essenciais e a serviços e prestações públicos essenciais; aplicação da lei; gestão da migração, do asilo e do controlo das fronteiras; administração da justiça e processos democráticos.
Essa focagem de áreas e sistemas críticos constitui, por si mesma, um avanço significativo para a construção de um enquadramento normativo adequado dos vários fenómenos gerados pelo uso da IA.
No entanto, é natural que este enorme esforço das instituições europeias seja encarado com cautela, para não dizer algum ceticismo. O objeto da nova regulamentação é um fenómeno largamente imaterial, suscetível de assumir uma infinidade de formas e de usos. A montagem de um pesado sistema de regulação e controlo, tendo como alvos principais os promotores e conceptores de dispositivos de IA, é a resposta típica de uma organização altamente burocratizada como a União Europeia. A finalidade é excelente – “promover a adoção de uma inteligência artificial (IA) centrada no ser humano e de confiança”, diz o art. 1º do Regulamento –, mas falta ver se o caminho escolhido segue a rota mais adequada para a atingir.
António Monteiro Fernandes @ Of Counsel, DCM | Littler