De tempos a tempos, o Tribunal de Justiça da União Europeia é chamado a pronunciar-se, a título pré-judicial, acerca de litígios referentes ao uso do chamado “véu islâmico” nos locais de trabalho ou mesmo em lugares públicos. A importância do tema, no âmbito da União, é muito desigual. É particularmente significativa nos países em que existem grandes contingentes populacionais com origem mais ou menos próxima no Norte de África ou Médio Oriente, onde impera a religião islâmica. São, nomeadamente, os casos da França e da Bélgica, onde, ademais, existe uma sensibilidade laica muito forte e culturalmente enraizada.
Como é sabido, a questão invariavelmente suscitada diz respeito a queixas de discriminação directa (com base na religião) ou indirecta (com base no sexo), à luz do disposto na Directiva 2000/78 do Conselho, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na actividade profissional. E é curioso que os pedidos de decisão pré-judicial são, invariavelmente, distribuídos ao mesmo juiz – o luxemburguês F. Biltgen – que é, assim, o “pai” da doutrina do Tribunal a respeito de tema tão delicado..
O mais recente acórdão do TJUE sobre o assunto, datado de 28 de novembro último (caso C-148/22, Commune d’Ans), trata justamente de uma situação surgida na Bélgica e, o que é mais, no âmbito da administração pública. A queixosa trabalha desde 2016 no Município de Ans, como chefe de um serviço sem contacto com o público. Em 2021, pediu autorização para passar a usar o véu no trabalho, que lhe foi recusada várias vezes. Invocando uma obrigação de “neutralidade absoluta”, o Município introduziu, inclusivamente, no seu Regulamento de Trabalho, a proibição do uso, pelos funcionários, de “qualquer sinal visível que possa revelar as suas convicções, nomeadamente, religiosas ou filosóficas, quer estejam ou não em contacto com o público”.
A funcionária em causa agiu judicialmente contra essa posição do Município, da qual, em sua opinião, resultava a violação da sua liberdade religiosa e uma discriminação em razão da sua religião. O tribunal do trabalho de Liège desdobrou o problema em duas questões dirigidas ao Tribunal de Justiça: haverá, no caso, discriminação (direta ou indireta) em função da religião? ou tratar-se-á de discriminação (indireta) em razão do sexo?
O acórdão do TJUE absteve-se de tratar da segunda questão, com fundamento na falta de consistência e de informação factual do pedido formulado pelo Tribunal de Liège.
Quanto à primeira, o Tribunal recordou a sua doutrina geral sobre o tema, que foi construída ao longo dos anos em sucessivas decisões: a proibição do uso de sinais ou símbolos religiosos pode constituir discriminação indireta se se verificar que essa proibição representa uma desvantagem específica para as pessoas que professam uma determinada religião; mas não o será se “objetivamente justificada por um objetivo legítimo, sendo os meios utilizados para o alcançar (no caso, a proibição) adequados e necessários”.
Ora – entende o TJUE – uma política de “neutralidade absoluta” de uma administração pública “com vista a instaurar no seu seio um ambiente administrativo totalmente neutro pode ser considerada justificada por um objetivo legítimo”, sob a condição de que a regra proibitiva derivada dessa política “seja adequada, necessária e proporcionada” perante os “diferentes direitos e interesses em presença”. Por outras palavras: a Diretiva 2000/78 não se lhe opõe sem mais.
Felizmente, este não é um problema que assuma em Portugal uma específica acuidade, mas nada garante que não venha futuramente a suscitar-se noutros termos.
António Monteiro Fernandes @ Of Counsel, DCM | Littler