A tecnologia tem assumido uma importância crescente na vivência em sociedade e as relações interpessoais e, em consequência, uma posição de destaque no universo laboral.
O processo de recrutamento e seleção, enquanto fase pré-contratual, a qual compreende toda a sequência de atos que antecede a celebração do contrato de trabalho, revela-se de súmula importância (note-se, a atuação das partes não é – nunca é – juridicamente irrelevante). Nesta fase, desenvolve-se a tarefa trabalhosa e demorada de seleção dos candidatos a emprego, na qual os recrutadores ficam encarregues da análise de currículos, testes práticos e psicológicos (entre outros), se recorrerem aos métodos comuns (leia-se, não tecnológicos) de seleção.
A evolução dos tempos trouxe consigo uma aliada fundamental no aperfeiçoamento destes processos seletivos – as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) e os mecanismos de Inteligência Artificial (IA) –, as quais permitem uma tomada de decisão na seleção de candidatos mais célere e menos dispendiosa do ponto de vista empresarial, comparativamente àquelas tomadas por um entrevistador humano. Adicionalmente, permitem uma diminuição significativa do grau de subjetivismo e, ainda, do escrutínio exacerbado inerente a este tipo de processos.
Mas em que consistem as TIC e os IA, potenciados por algoritmos? O algoritmo é um conjunto de regras que visam uma análise de dados fornecidos pelo cliente. Isto é, a partir de critérios pré-estabelecidos, os algoritmos fazem a gestão de dados e geram indicadores dos quais extraem as melhores decisões, tendo em vista um recrutamento e seleção mais funcionais e inteligentes.
Sem prejuízo da bondade e celeridade que estes mecanismos proporcionam, há que reconhecer que as TIC e os mecanismos de IA não são isentos de críticas e que as suas “decisões” não são incontestáveis. A sensação de desconfiança e descrédito pela escolha do algoritmo aumenta à medida que a sua utilização se expande além do recrutamento, ou seja, quando passa a ser aplicada igualmente a processos de avaliação interna no seio da empresa.
Em matéria de recrutamento, uma das críticas que se pode assinalar aos algoritmos é que estes poderão determinar, dependendo da forma como são programados, bem como das instruções e da finalidade a obter, a exclusão de certo tipo de perfil de candidato(s) ou o favorecimento de outro(s), podendo favorecer e/ou fomentar discriminações não legalmente permitidas ao abrigo das regras laborais vigentes.
Assim, pergunta-se: como conciliar este “recrutamento inteligente” com o direito à igualdade no acesso ao emprego e no trabalho e com a proibição de discriminação laboral previstos nos arts. 24.º e 25.º do Código do Trabalho (“CT”)?
Se ampliarmos o foco da nossa análise a ordenamentos jurídicos estrangeiros, denotamos, p.e, que nos Estados Unidos da América têm vindo a ser discutidos os prós e contras da utilização de algoritmos em processos de recrutamento, tendo, inclusive, os algoritmos sido entendidos como redutores da subjetividade inerente aos processos de recrutamento “normais” (realizados por seres humanos), o que decorre, desde logo, da circunstância de os algoritmos de recrutamento não recorrerem, naturalmente, a emoções na hora de selecionar os perfis dos candidatos e de não imprimem uma carga pessoal na análise do perfil dos candidatos. Tal implicaria um acréscimo assinalável (ainda que, na verdade, aparente) da objetividade na escolha do(s) candidato(s).
Mas será mesmo assim? Não poderão os algoritmos ser também manipulados de forma discriminatória? O facto de os algoritmos otimizarem o trabalho dos recursos humanos, melhorando as decisões finais, não significa que o façam sempre.
Veja-se, a título de exemplo, o caso da Amazon, que em 2018 foi “atraiçoada” por um algoritmo utilizado no processo de recrutamento, que desconsiderava os perfis das candidatas mulheres, dando preferência aos perfis de candidatos homens, contrariando frontalmente o princípio da não discriminação e igualdade de oportunidades no acesso ao emprego(art. 24.º do CT) . Terão as máquinas preconceitos? Neste caso, e uma vez que a empresa contratava maioritariamente trabalhadores do sexo masculino, o algoritmo considerou que existia uma preferência por estes perfis em detrimento das mulheres, com base nas informações fornecidas e naquilo que já era prática da própria empresa. Será este um caso isolado?
Em Portugal, o uso de algoritmos em contexto laboral ainda não é uma realidade ou, pelo menos, uma realidade transversal a um conjunto alargado de entidades empregadoras. No entanto, olhando à realidade internacional e de olhos postos no futuro, importa atender aos desafios e questões de mais difícil resposta que a utilização de algoritmos poderá colocar:
Com efeito, o sistema de algoritmos parece ser vulnerável à invocação de discriminação por parte dos trabalhadores e/ou candidatos a emprego. Cabendo ao empregador nos termos do artigo 25.º do CT provar que não existiu discriminação, tal gera uma dificuldade, desde logo técnica, já que à partida o empregador não estará apto a compreender o funcionamento do algoritmo e como tal deveria ser chamado o fornecedor/programador do algoritmo para provar que o algoritmo foi devidamente programado. Neste caso, não poderá colocar-se, porventura, em causa o segredo de negócio? E se se apurasse que o algoritmo tinha sido efetivamente mal programado, existiria responsabilidade solidária do empregador e programador perante o trabalhador e/ou candidato a emprego discriminado?
Estas são algumas dúvidas e inquietudes que a implementação prática de ferramentas de inteligência artificial evidenciam. Atendendo ao quadro legal vigente, estará Portugal preparado para que a tecnologia interfira em meandros de tal sensibilidade como são as relações laborais, marcadas pelo caráter de pessoalidade entre as partes, em especial em matéria de discriminação no processo de formação do vínculo?
Luísa S. Pereira | Gonçalo Asper Caro | Inês Cruz Delgado | DCM Lawyers