A título de reenvio prejudicial, pelo Supremo Tribunal do Trabalho Federal alemão, chegou ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) o processo que decorria nos Tribunais alemães e colocava em confronto um trabalhador e o seu empregador, relativamente a uma questão de suplemento de horas extraordinárias em caso de férias. O TJUE proferiu o Acórdão, no passado dia 13 de janeiro de 2022.
A situação de facto
O trabalhador contratado como trabalhador temporário a tempo inteiro, prestou, durante o mês de agosto de 2017, 121,75 horas de trabalho nos primeiros 13 dias do mês. Nos restantes 10 dias úteis do mês, gozou as férias anuais remuneradas correspondentes a 84,7 horas de trabalho.
Consta da Convenção Coletiva Geral alemã sobre o Trabalho Temporário (Convenção), a previsão de um suplemento por horas extraordinárias, quando o volume horário das horas trabalhadas ultrapassasse o limiar de 184 horas mensais.
Sucede que, no mês de agosto de 2017, o empregador não pagou este suplemento ao trabalhador, com base no argumento de que a gozo das férias não era contabilizado para efeitos de cálculo de horas em matéria de suplemento por horas extraordinárias.
Em face de tal, o trabalhador intentou uma ação na 1.ª Instância, considerando que os dias de férias anuais deveriam ser tidos em conta para determinar o número de horas trabalhadas. A sua ação foi julgada improcedente quer pela 1.ª Instância, quer em sede de recurso.
Com vista a uma decisão favorável, o trabalhador interpôs recurso para o Supremo Tribunal do Trabalho Federal alemão. Este Tribunal reenviou questão, a título de «reenvio prejudicial», para o TJUE.
A questão prejudicial
Em sede de reenvio prejudicial, o Supremo Tribunal do Trabalho Federal alemão salientou que a Convenção determina que «só as horas trabalhadas podem ser contabilizadas para determinar se o trabalhador ultrapassou o limite do contingente horário do tempo de trabalho mensal normal».
Neste sentido, o termo “horas cumpridas” remete para o conceito de horas de trabalho realmente prestadas, com exclusão dos períodos de férias, uma vez que o objetivo deste suplemento por horas extraordinárias reside, nos termos da referida Convenção, na compensação devida ao trabalhador que trabalha para além das suas obrigações contratuais. Assim, o direito a este suplemento adquire-se pelo trabalho, não podendo ser contabilizados os períodos de férias. Tendo em conta este seu entendimento, o Supremo Tribunal do Trabalho Federal alemão tinha dúvidas relativamente à compatibilidade entre este regime previsto na Convenção e a jurisprudência do TJUE, uma vez que, na prática, este implica uma restrição ao direito ao suplemento e consubstancia uma forma de dissuadir o trabalhador de exercer o seu direito ao período mínimo de férias anuais pagas.
Normas comunitárias relevantes
Cabe, aqui observar, as normas comunitárias referidas no Acórdão em análise. O TJUE considerou de extrema relevância os artigos 31.º n.º 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (Carta) e 7.º da Diretiva 2003/88 do Parlamento Europeu e do Conselho (Diretiva). O primeiro determina que “Todos os trabalhadores têm direito a uma limitação da duração máxima do trabalho e a períodos de descanso diário e semanal, bem como a um período anual de férias pagas”, por outro lado, o segundo (que deve ser interpretado à luz do primeiro) estipula que “Os Estados-Membros tomarão as medidas necessárias para que todos os trabalhadores beneficiem de férias anuais remuneradas de pelo menos quatro semanas, de acordo com as condições de obtenção e de concessão previstas nas legislações e/ou práticas nacionais”.
O TJUE já se pronunciou anteriormente sobre a importância do direito a férias anuais remuneradas, nomeadamente, no Acórdão de 6 de novembro de 2018, onde se refere que este “deve ser considerado um princípio do direito social da União que, revestindo especial importância, não pode ser derrogado e cuja aplicação pelas autoridades nacionais competentes só pode ser efetuada dentro dos limites expressamente previstos por esta diretiva”.
São de extremo valor nesta matéria, os Acórdãos de 6 de novembro de 2018 e de 13 de dezembro de 2018, ambos do TJUE, que expõem, respetivamente, que: “os incentivos no sentido de renunciar às férias de descanso ou de levar os trabalhadores a renunciarem às férias são incompatíveis com os objetivos do direito a férias anuais remuneradas (…). Assim, qualquer prática ou omissão de um empregador que tenha um efeito potencialmente dissuasivo sobre o gozo das férias anuais por um trabalhador é igualmente incompatível com a finalidade do direito a férias anuais remuneradas”; e que “quando a remuneração paga a título do direito a férias anuais remuneradas (…) é inferior à remuneração normal que o trabalhador recebe durante os períodos de trabalho efetivo, este corre o risco de ser incitado a não gozar as suas férias anuais remuneradas (…), na medida em que isso conduziria, durante esses períodos, a uma diminuição da sua remuneração”.
Ora, no caso concreto em análise, o exercício do direito a férias anuais pagas pelo trabalhador resultou numa diminuição da remuneração auferida no mês de agosto de 2017, em face daquela que teria recebido se não tivesse gozado dias de férias, o que vai contra o sentido, por um lado, das normas comunitárias acima descritas e, por outro, da jurisprudência do TJUE.
Concluiu, então o TJUE, quanto à questão prejudicial, que “um mecanismo de contabilização das horas trabalhadas, como o que está em causa no processo principal, nos termos do qual o gozo de férias pode implicar uma redução da remuneração do trabalhador, uma vez que esta é amputada do suplemento previsto para as horas extraordinárias efetivamente cumpridas, é suscetível de dissuadir o trabalhador de exercer o seu direito a férias anuais remuneradas durante o mês em que cumpriu horas extraordinárias”, não respeitando a previsão do artigo 7.º da Diretiva lido à luz do artigo 31.º n.º 2 da Carta que deve ser interpretado no sentido de se opor a uma disposição como a que está presente na Convenção, invocada como argumento para a improcedência da ação nos Tribunais alemães.
Em suma, tendo em conta a vasta jurisprudência comunitária neste sentido, é possível dizer que, ainda que se trate de um suplemento a receber em caso específico de o trabalhador fazer horas extraordinárias, o conceito de «férias pagas» deve ser alargado de forma a abranger as situações em que há uma redução na remuneração por conta do gozo de férias, uma vez que isso pode, na prática, ser uma razão para o trabalhador não gozar o seu direito o que corrompe o sentido útil das normas comunitárias relativas a este tema. Por consequência, não podem ser criados pelos Estados-Membros, sob qualquer forma, mecanismos que desvirtuem este direito e possibilitem ao empregador dissuadir, ainda que de forma indireta, o trabalhador a gozar o direito a férias anuais remuneradas.
Rita Sequeira Marcolino @ DCM | Littler