No dia 24 de abril, o Tribunal da Relação de Lisboa, confirmando a decisão proferida pela primeira instância, determinou que não viola a intimidade da reserva da vida privada a empregadora que considera mensagens enviadas pelo trabalhador a uma colega, via WhatsApp, no âmbito de uma relação íntima mantida entre ambos, com fundamento no facto de tais mensagens terem sido livremente entregues pela trabalhadora à empregadora, consubstanciando o comportamento do trabalhador justa causa para despedimento.
Trata-se de uma decisão que segue uma tendência crescente de tomada de posição dos nossos tribunais e sobre a qual já tivemos oportunidade de nos pronunciar (aqui e aqui) levantando, uma vez mais, o debate sobre (in)admissibilidade da prova ilícita
No caso em apreço o douto tribunal deparou-se com uma situação em que, um trabalhador se fez prevalecer da sua posição hierárquica na organização da empregadora e condição de colega para manter uma relação íntima com outra trabalhadora da mesma empregadora e persuadi-la a interromper voluntariamente a gravidez, tendo recorrido a diversas ameaças (incluindo relativas à possibilidade de cessação do vínculo laboral da trabalhadora) para levar a cabo a sua vontade.
Adianta-se que o douto Tribunal decidiu, neste caso, não só que o meio de prova utilizado é admissível, como também lícito. Para alcançar esta conclusão, o douto Tribunal ad quem apresentou a seguinte argumentação:
- A prova ilícita, na maioria dos casos, prende-se com provas em que a própria obtenção se encontra revestida de ilicitude. No caso, a empregadora acedeu às mensagens de WhatsApp através da cedência livre e voluntária das mesmas pela colega, interveniente na conversa.
As mensagens não foram enviadas como confidenciais e não se referem à intimidade da vida privada, não havendo uma violação do art. 16.º CT: o comportamento do empregador não surge ligado a uma utilização abusiva da informação, sendo que “se houver conhecimento das partes, o terceiro pode conhecer o conteúdo”.
- Não houve intromissão na obtenção das mensagens e o uso das mesmas não se considera desproporcionado ou excessivo, dado o conteúdo e gravidade das mesmas, que revelam ameaças. O comportamento do trabalhador consubstancia, inequivocamente, justa causa de despedimento, considerando que a sua conduta surge no ambiente laboral, tendo sido criada uma conexão clara entre o comportamento e o espaço laboral, cabendo à entidade empregadora garantir o ambiente de trabalho “seguro e sadio” e, nos termos da lei “as boas condições de trabalho, do ponto de vista físico e moral”.
Será a prova obtida (i)licita? E consequentemente, (in)admissível a sua valoração?
No recurso interposto pelo trabalhador, o argumentou que a entidade empregadora, ao valorar para efeitos de prova, em sede de procedimento disciplinar, as referidas mensagens de Whatsapp, terá violado o disposto nos artigos 26.º e 32.º, n.º 8 da Constituição da República Portuguesa (CRP) e, ainda, os artigos 16.º e 22.º do Código do Trabalho (CT), considerando que tais mensagens revestiam natureza privada e, como tal, deveriam beneficiar da tutela correspondente.
O tribunal a quo entendeu em sentido diverso, fundamentalmente, porque:
- Na ausência de disposição legal reguladora da prova ilícita em processo civil, a jurisprudência e doutrina nacionais vêm sendo relativamente unânimes, admitindo a valoração de provas materialmente ilícitas, em determinados casos, mediante a aplicação do princípio da proporcionalidade. Isto é, numa lógica de ponderação de equilíbrio entre meio/fim, de necessidade e adequação, de tal modo que seja justificável a compressão de um direito fundamental em face do direito à prova.
- Contudo, e no entendimento do mesmo tribunal, a questão não chega a ser essa, mas antes a própria ilicitude da prova (não do método de obtenção), entendendo que a entrega voluntária das mensagens pela trabalhadora – destinatária e emissora das mesmas – pela sua relevância disciplinar, é lícita.
- Seguindo mesmo o Ac. do TRL de 28.04.2022 (disponível aqui) refere que tais mensagens “… têm valor equivalente a comunicação que tivesse sido estabelecida entre um e outro por uma via mais tradicional, como uma carta recebida pelos serviços de correio” e que, não tendo sido acedidos de forma ilícita pela trabalhadora, não se tratando de documento donde conste assinatura digital certificada, e tratando-se de cópias, a sua força probatória deverá ser apreciada nos termos gerais de direito (cfr. artigos 362.º e ss. do CC e 4.º do DL n.º 290-D/99).
Quando a este ponto, diremos que não parece totalmente líquida a posição e entendimento do julgador. De facto, poderão levantar-se dúvidas quanto à legitimidade da empregadora na utilização das mensagens de Whatsapp. Isto porque, pese embora se concorde com a legitimidade de acesso às mensagens pela trabalhadora – destinatária e emissora – a empregadora já ocupa a posição de terceiro, sendo certo que, como refere Teresa Moreira, em obra citada pelo tribunal a quo, “o direito ao sigilo das comunicações abrange um tipo de comunicação fechada, isto é, uma comunicação individual que se destina a um recetor individualizado ou um círculo de destinatários previamente determinado. Assim, deve entender-se que abrange uma relação comunicacional que existe dentro de um «certo, preciso e determinado número de intervenientes” acrescentando que “este direito implica, desde logo que ninguém as viole ou as devasse, no sentido de que a tomada de conhecimento não autorizada do conteúdo da correspondência é, em si própria, ilícita.”.
Mas este “consentimento” é entendido como provindo das partes e não apenas de um dos sujeitos que compõe o “círculo de destinatários previamente determinado”. Acrescendo que, pese embora a ligação ao contexto laboral, verifica-se nas mensagens a presença de conteúdo que integra a esfera da intimidade da vida privada do trabalhador.
A posição jurisprudencial e doutrinária relativamente à aplicabilidade de um juízo de proporcionalidade na admissibilidade de valoração da prova ilícita em processo civil não passa sem merecer críticas. Miguel Teixeira de Sousa[1], pese embora defenda a aplicação analógica do artigo 32.º, n.º 8 da CRP ao processo civil, assevera que “a prova é ilícita quando se verifica uma intromissão abusiva na privacidade da parte.” mas “uma intromissão abusiva não é uma intromissão desproporcionada em função de um fim, mas uma intromissão que, em si mesma, é violadora de interesses do visado” (destacado nosso). Remata o mesmo Autor que “Admitir em processo civil que, num conflito entre privados (ou entre entes que atuam como tal), uma ingerência na privacidade de alguma das partes é algo cuja licitude ainda se irá apurar em função dos interesses da outra parte constitui uma solução que não deveria deixar ninguém muito descansado.”
O caso em apreço levanta uma série de questões jurídicas, substantivas e adjetivas cuja ponderação é, no mínimo, desafiante. Retomando a posição adotada por Miguel Teixeira de Sousa cumpre, de facto avaliar o grau de conexão laboral existente, a relevância dos deveres de garantia pelo empregador de segurança e de criação e manutenção de um ambiente de trabalho sadio e, ainda assim, se tal conexão e deveres bastam para afastar o caráter abusivo da utilização de mensagens trocadas em ambiente “fechado” e privado, entre trabalhadores.
Estes são, certamente, temas a cujos desenvolvimentos ficaremos atentos.
Rui Rego Soares e Filipa Bilé Grilo @ DCM | Littler
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[1] Cfr. .Miguel Teixeira de Sousa, in “Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa”, A prova ilícita em processo civil: em busca de linhas orientadoras, Vol. LXI, número 2, 2020, Março, 2021.