A implementação de canais de denúncia nas diversas organizações laborais não representa uma novidade. O Decreto-Lei n.º 109-E/2021 de 9 de dezembro (RGPC) e a Lei n.º 93/2021 de 20 de dezembro (RGPDI), foram publicados em DRE nos dias 09.12.2021 e 20.12.2021, respetivamente.
Com efeito, ambos os regimes de conformidade normativa (vulgo “compliance”) encontram-se plenamente em vigor, bem como o respetivo regime sancionatório em caso de não conformidade com as obrigações que destes resultam.
Do mesmo modo, a entidade administrativa competente, o MENAC – Mecanismo Nacional Anticorrupção, encontra-se implementado e tem procedido com diversos documentos de trabalho neste último trimestre, designadamente ao nível da criação e divulgação de guias e recomendações síntese (ver aqui).
Sem prejuízo de outras, existe uma obrigação comum entre o RGPC e o RGPDI, que merece particular destaque: a implementação de, pelo menos, um canal de denúncias interno. Assim, a título de exemplo, recupere-se alguns enunciados legais:
Art. 5.º, n.º 1, do RGPC: | Art. 7.º, n.º 1, do RPDI |
As entidades abrangidas adotam e implementam um programa de cumprimento normativo que inclua, pelo menos, um plano de prevenção de riscos de corrupção e infrações conexas (PPR), um código de conduta, um programa de formação e um canal de denúncias, a fim de prevenirem, detetarem e sancionarem atos de corrupção e infrações conexas, levados a cabo contra ou através da entidade. | As denúncias de infrações são apresentadas pelo denunciante através dos canais de denúncia interna ou externa ou divulgadas publicamente. |
Art. 8.º, n.º 1, do RGPC: | Art. 8.º, n.º 1, do RGPDI: |
As entidades abrangidas dispõem de canais de denúncia interna e dão seguimento a denúncias de atos de corrupção e infrações conexas nos termos do disposto na legislação que transpõe a Diretiva (UE) 2019/1937, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2019, relativa à proteção das pessoas que denunciam violações do direito da União | As pessoas coletivas, incluindo o Estado e as demais pessoas coletivas de direito público, que empreguem 50 ou mais trabalhadores e, independentemente disso, as entidades que estejam contempladas no âmbito de aplicação dos atos da União Europeia referidos na parte i.B e ii do anexo da Diretiva (UE) 2019/1937 do Parlamento Europeu e do Conselho, doravante designadas por entidades obrigadas, dispõem de canais de denúncia interna. |
A lei é expressa quanto aos requisitos e às caraterísticas destes canais de denúncia: (i) permitem a apresentação e o seguimento seguros de denúncias, (ii) a fim de garantir a exaustividade, integridade e conservação da denúncia, (iii) a confidencialidade da identidade ou o anonimato dos denunciantes e (iv) a confidencialidade da identidade de terceiros mencionados na denúncia, e de impedir o acesso de pessoas não autorizadas (art. 9.º, n.º 1 do RGPDI). Adicionalmente, estes canais devem assegurar a receção e seguimento das denúncias (art. 9.º, n.º 2 do RGPDI. Devendo ser garantidos os deveres de independência, imparcialidade, confidencialidade, proteção de dados, sigilo e ausência de conflitos de interesse por parte de quem faça a gestão, ou seja, para o efeito, responsável pelo referido canal (art. 9.º, n.º 4 do RGPDI).
Do ponto de vista da configuração (forma e admissibilidade), o canal de denúncias deve permitir a denúncia escrita ou verbal, anónimas ou com a identificação do denunciante (art. 10.º, n.º 1 do RGPDI). Sendo a denúncia verbal, os canais de denúncia interna permitem a sua apresentação por telefone ou através de outros sistemas de mensagem de voz e, a pedido do denunciante, em reunião presencial (art. 10.º, n.º 2 do RGPDI).
A lei refere-nos ainda que denúncia pode ser apresentada com recurso a meios de autenticação eletrónica com cartão de cidadão ou chave móvel digital, ou com recurso a outros meios de identificação eletrónica emitidos em outros Estados-Membros e reconhecidos para o efeito nos termos do artigo 6.º do Regulamento (UE) n.º 910/2014, desde que, em qualquer caso, os meios estejam disponíveis (art. 10.º, n.º 3 do RGPDI).
Nada se diz, todavia, sobre se existem caraterísticas adicionais ou requisitos implícitos, não expressamente contemplados pelo RGPC e pelo RGPDI. Vejamos. Determinando-se a implementação de um canal de denúncias via “software” ou por via de uma “app”, ou num sistema eletrónico similar (i.e., com recurso a tecnologia), existe o risco de o mesmo canal de denúncia vir a ser considerado “discriminatório”, diante, v.g., dos trabalhadores “infoexcluídos” que não saibam manusear as tecnologias em causa? Será que uma “app” altamente complexa pode ser considerada, pelo MENAC, como um obstáculo ou um constrangimento à efetivação de denúncias?
Parece-nos que estas dúvidas podem ser perspetivadas em torno de uma obrigação implícita das organizações laborais, sujeitas a este regime, em garantir a efetividade (igualdade, não discriminação e inclusão) nesta implementação dos canais de denúncia interna. A mesma poderá (ou deverá) ser objeto de avaliação prévia, assim como um especial cuidado aquando da parametrização do canal, mas sobretudo sobre o dever de formar e comunicar (sobre) o mesmo canal (ou sobre os canais).
Estaremos atentos a mais desenvolvimentos.
Tiago Sequeira Mousinho @ DCM | Littler