A jurisprudência, em especial a produzida pelos tribunais superiores, merece uma atenção constante – para não dizer quotidiana – por parte de todo o tipo de operadores jurídicos. A formação de tendências decisórias, não obstante a inexistência de precedentes vinculativos, é um processo muitas vezes subtil e não diretamente percecionado, dada a diversidade dos casos apreciados e dos ângulos de abordagem adotados pelos julgadores.
Temos um razoável exemplo num recente acórdão do STJ (STJ 08/02/2024, Pº 8689/21.0T8LSB.L1.S1) acerca do regime de isenção de horário de trabalho.
Nele se tratava de uma situação de isenção de horário de trabalho expressamente contemplada no contrato individual, em cláusula que indicava os respetivos fundamentos: “a responsabilidade e a especial confiança inerentes ao exercício de funções na Direção de Instalações Especiais e o facto de as mesmas terem, necessária e frequentemente, de ser desempenhadas sem sujeição aos limites máximos dos períodos normais de trabalho”.
Noutra cláusula do mesmo contrato, estipulava-se um certo valor devido ao trabalhador pela isenção, especificando-se que ele seria pago “enquanto exercer as funções referidas no número 2 da cláusula anterior e/ou enquanto se mantiver a necessidade do regime de isenção de horário de trabalho (…)”.
Esse clausulado, em concreto, não deixava espaço para grandes dúvidas: o acordo das partes já definia originariamente a possibilidade de cessação da isenção (e do respetivo pagamento) pelo facto de as funções deixarem de ser exercidas ou de a própria isenção deixar de ser necessária – circunstância naturalmente dependente de juízo do empregador, enquanto responsável pela organização do trabalho. Assim, a isenção poderia desaparecer, e a remuneração deixar de ser paga, sem necessidade de novo e específico acordo das partes. Mas isso resultava da própria estipulação inicial, nos termos que assumiu no concreto contrato de trabalho.
No entanto, a súmula do acórdão é do seguinte teor: “Independentemente de posterior acordo das partes nesse sentido, logo que cesse a situação que motivou a prestação de trabalho em regime de isenção de horário de trabalho, o empregador pode deixar de pagar a remuneração especial a que, em contrapartida desse regime, se obrigou.”
Ou seja: formulou-se uma diretriz genérica e abstrata a partir da apreciação de um caso concreto, marcado por características singulares.
Dado que se trata de matéria ainda hoje questionada e duvidosa, bem pode perguntar-se se se está perante a semente de uma tendência jurisprudencial robusta.
António Monteiro Fernandes @ DCM | Littler