De modo a que consigamos perceber a relevância desta questão, é imperioso atentarmos que, no ordenamento jurídico português, abona a favor do empregador o princípio da liberdade de trabalho e profissão, constitucionalmente consagrado no artigo 47.º da CRP. No entanto, a este não se atribui um caráter absoluto, dada a necessidade de compatibilização com o antinómico princípio da estabilidade do vínculo laboral, igualmente elevado à categoria de princípio constitucional, tal como podemos estatuir do artigo 53.º da CRP.
Decorre deste estruturante princípio da ordem social portuguesa uma constante preocupação pela minoração das situações de precariedade laboral, com reflexo no conjunto de medidas implementadas pelo legislador. Destaca-se, neste ensejo, i) o facto do empregador se encontrar desprovido de carta branca que lhe permita romper o vínculo laboral ad nutum ou ii) a impossibilidade temporária de execução da prestação laboral, devida a facto não imputável ao trabalhador, determinar a suspensão do vínculo contratual.
Do exposto, podemos, desde logo, extrair que a celebração de um contrato de trabalho representa para o empregador a assunção de um elevado risco. Afirmação que se torna ainda mais clara se atentarmos no facto do empregador assumir o risco de ser responsabilizado contratual (artigo 800.º do CC) ou extracontratualmente (artigo 500.º do CC) por um ato do trabalhador.
Por ser assim, na fase pré-contratual, aquando da seleção do candidato a trabalhador, o empregador irá procurar contratar com aquele que manifeste melhores competências para o cargo em questão, mas esta opção poderá não se esgotar com base no preenchimento daquele requisito, podendo, na ótica do empregador, ter igualmente relevância para a tomada de decisão (não se discutindo aqui a questão da legitimidade) dados como a saúde, o temperamento ou o histórico criminal daquele.
Ora, é precisamente neste âmbito que o empregador recorre frequentemente a “referências orais”, as quais configuram uma ferramenta de averiguação da adequação do trabalhador aliciante, informal e, digamos, até então de baixo risco.
Com efeito, no passado dia 7 de março de 2024, o TJUE emitiu o Acórdão no processo C-740/22 que poderá ter implicações nesta matéria para os empregadores.
Atentemos.
O caso diz respeito a uma empresa de produção finlandesa que organizou um concurso e pretendia verificar o registo criminal de um participante. A empresa apresentou um pedido oral a um tribunal para obter informações sobre processos penais em curso ou findos relativos à pessoa visada. O pedido foi indeferindo com fundamento em que tal constituiria um tratamento de dados pessoais na aceção do artigo 4.º, ponto 2, do RGPD. Perante esta situação, a empresa recorreu para um tribunal superior, o qual, decidiu suspender a instância e submeter ao TJUE um pedido de decisão prejudicial.
Com particular relevância para a discussão em apreço, uma das questões objeto de decisão era a seguinte: a comunicação oral de dados pessoais constitui um tratamento de dados pessoais na aceção do artigo 2.º, n.º 1 e do artigo 4.º, ponto 2 do RGPD?
O TJUE entendeu que, ao abrigo dos preceitos normativos invocados, o conceito de “tratamento” referido no RGPD abrange necessariamente a divulgação oral de dados pessoais, desde que os dados objeto desse tratamento estejam contidos ou se destinem a figurar num “ficheiro”.
Considerando que:
i) O conceito de “ficheiro” é definido como “qualquer conjunto estruturado de dados pessoais, acessível segundo critérios específicos, quer seja centralizado, descentralizado ou repartido de modo funcional ou geográfico” (artigo 4.º, ponto 6 do RGPD);
ii) Resulta da redação desta última disposição e do considerando 15 do RGPD que o regulamento se aplica tanto ao tratamento automatizado de dados pessoais como ao tratamento manual desses dados. Daqui decorrendo, também, que o referido regulamento só é aplicável ao tratamento manual de dados pessoais “contidos em ficheiros ou a eles destinados”;
iii) A este respeito, o TJUE declarou que esta disposição define de forma ampla o conceito de “ficheiro”, ao abranger, nomeadamente, “qualquer” conjunto estruturado de dados pessoais.
iv) A exigência de que o conjunto de dados pessoais tenha um caráter “estruturado […] segundo critérios específicos” visa apenas permitir que os dados relativos a uma pessoa possam ser facilmente encontrados.
v) Com exceção desta exigência, o artigo 4.º, ponto 6, do RGPD não prevê nem as modalidades segundo as quais um ficheiro deve ser estruturado, nem a forma que este deve ter.
vi) Em particular, não resulta desta disposição nem de mais nenhuma disposição deste regulamento que os dados pessoais em causa devem constar de fichas ou listas específicas, ou ainda de outro sistema de pesquisa, para que se possa concluir pela existência de um ficheiro na aceção do referido regulamento (cfr., por analogia, Acórdão de 10 de julho de 2018, C‑25/17, n.ºS 56 a 58).
Assim, sendo o conceito de “ficheiro” um termo definido em sentido lato, o qual significa “qualquer conjunto estruturado” de dados pessoais, não havendo qualquer especificação do que se compreende pelo mesmo, este estará provavelmente preenchido quando um empregador se baseia em informações que possui sobre um candidato para fornecer ou receber a referência oral.
Atento o exposto, deste Acórdão resultam importantes implicações para os empregadores, reforçando a relevância indiscutível do RGPD no panorama jurídico nacional, o qual extravasa o seu campo de influência natural e se estende a contextos aparentemente informais, como o é dar ou receber referências orais (nomeadamente quando essas referências contêm dados de categorias especiais ou dados criminais).
De facto, e terminando com uma frase retirada de um texto de Vera Lúcia Raposo a propósito deste caso (disponível aqui), “even if you whisper it to me, it still counts as data processing”.
Rute Gonçalves Janeiro @ DCM | Littler