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Criptoativos e Direito do Trabalho

By 15 Fevereiro, 2023No Comments

David Carvalho Martins, Managing Partner na DCM | Littler, em conjunto com Inês Godinho, Jurista na DCM | Littler, participaram na última edição da Vida Judiciária subordinada ao tema: “Ativos Virtuais: O contributo do Direito”, onde abordaram o tema: “Criptoativos e Direito do Trabalho”.

Pode ler aqui o artigo completo nas páginas 62 e 63 da Revista.

Os “criptoativos” estão na ordem do dia. Numa primeira fase, devido ao seu exponencial crescimento. Mais recentemente, com o surgimento de notícias mais negativas sobre o colapso de plataformas de “criptomoedas”. Não é, por isso, uma
área isenta de riscos, de incertezas e de inquietações.

No entanto, não podemos negar, à partida, a sua capacidade para influenciar as relações laborais, nomeadamente no âmbito de prestações de trabalho plurilocalizadas, à distância ou em contexto internacional.

Procuraremos deixar quatro notas para reflexão.

Em primeiro lugar, tem sido colocada a questão da admissibilidade da utilização de “criptoativos” como uma nova forma de pagamento da
retribuição ao trabalhador.

Tal ficou a dever-se, porventura,(i) à valorização excecional das “criptomoedas” desde a sua criação, mas também (ii) ao carácter excessivo dos custos associados ao trabalho (tributação, quotizações, contribuições).

Contudo, será possível pagar parte da retribuição através de “criptoativos”?

Como ponto de partida, devemos ter presente (i) que se trata de uma solução que não está expressamente prevista na legislação laboral e (ii) que se distingue do pagamento em dinheiro, porque a “criptomoeda” não é uma moeda com curso legal em Portugal.

São obstáculos intransponíveis para a adesão a “criptosalários”?

Não sendo uma moeda com curso legal, a “criptomoeda” pode ser enquadrada como retribuição em espécie, a qual (i) deve destinar-se à satisfação de necessidades pessoais do trabalhador ou da sua família e, em regra, (ii) o seu valor não pode exceder
o da parte em dinheiro. Os exemplos típicos de retribuição em espécie são a alimentação e o alojamento, mas podem ser outros bens. Tendo em conta que os “criptoativos” têm natureza patrimonial – são suscetíveis de avaliação e conversão em dinheiro
e que o trabalhador pode, por exemplo, ter atividades lúdicas ou profis-
sionais paralelas no metaverso, onde as “criptomoedas” são aceites, vemos com alguma dificuldade a possibilidade de negar-lhes a natureza retribuição em espécie.

Cabe, porém, referir que as prestações em dinheiro não podem ser substituídas integralmente por “criptoativos”. Por outro lado, salvo melhor opinião, os “criptoativos” não devem colocar o pagamento de um valor mínimo em dinheiro correspondente à
retribuição mínima mensal garantida.

Atendendo à volatilidade dos “criptoativos” – para o bem e para o mal, mas também às recentes notíciasde instabilidade e de colapso deste mercado específico, o recurso a estes novos ativos deve estar associado ao cumprimento de deveres de informação especiais na relação laboral, cujo
grau de detalhe pode ser inversamente proporcional ao grau de conhecimento e domínio destes temas por parte do trabalhador. Por outras palavras, um trabalhador que esteja habituado e que recorra com frequência ao mercado dos “criptoativos” estará, à
partida, mais informado do que a generalidade dos trabalhadores e, por isso, não carecerá do mesmo nível de informação detalhada.

Em particular, os trabalhadores devem ser informados sobre as vantagens, os riscos – em particular, a volatilidade –, bem como sobre o modo de utilização e mobilização. Com efeito, no momento da entrega ao trabalhador, um conjunto de “criptoativos”
pode estar avaliado em J 1000,00; porém, algumas semanas depois, pode valer J 200,00 ou J 1500,00, sendo que inexistem, tradicionalmente, garantias de capital investido.

Assim, com algumas limitações e cuidados, os “criptoativos” podem enquadrar-se parcialmente na remuneração dos trabalhadores.

Em segundo lugar, surge o tema do pagamento de bónus ou prémios ou a atribuição de liberalidades aos trabalhadores em “criptoativos”.
Aqui cumpre fazer uma distinção, consoante estas prestações sejam, ou não, qualificadas como retribuição.

Se não forem qualificadas como retribuição (por exemplo, uma prenda por altura do aniversário ou um bónus baseado na participação nos lucros da empresa, tendo o trabalhador direito a uma retribuição certa, variável ou mista, adequada ao seu trabalho), existe uma larga margem para a
utilização de “criptoativos”.

Ao invés, se os bónus ou prémios forem qualificados como retribuição (por exemplo, uma gratificação ex-pressamente prevista no contrato de trabalho com carácter regular e permanente, independentemente da variabilidade do seu montante), as cautelas acima referidas têm plena aplicação ao caso concreto.

Poder-se-ia comparar esta situação com aquela em que se o empregador proporciona aos trabalhadores ações ou outros valores mobiliários da empresa. Não obstante, poder-se-ia responder que a regulação e a previsibilidade de ambos os benefícios não
seriam comparáveis. Ainda assim, não podemos deixar de notar que a proposta de Orçamento do Estado para 2023 (“OE 2023”) aproximou a tributação das mais-valias decorrentes de operações com “criptoativos” do regime aplicável às mais-valias mobiliárias.

Em terceiro lugar, o acolhimento dos “criptoativos” será fortemente afetado pela solução prevista na proposta de OE 2023.

Nos termos da proposta de OE 2023, considera-se “criptoativo” como “toda a representação digital de valor ou direitos que possa ser transferida ou armazenada eletronicamente recorrendo à tecnologia de registo distribuído ou outra semelhante.” Ficam excluídos os “criptoativos” únicos e não
fungíveis com outros “criptoativos”.

Até à proposta de OE 2023, não estava prevista tributação das mais valias associadas a alienações de “criptoativos” em Portugal. Era uma circunstância que, apesar dos riscos associados, tornava esta realidade atrativa, nomeadamente para o uni-
verso laboral.

Ora, as mais-valias passam a ser consideradas rendimentos da Categoria B do Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares (doravante IRS) e, assim, tributadas a 28% (sem prejuízo da opção de englobamento).

No entanto, prevê-se a isenção no caso de os “criptoativos” serem detidos por um período igual ou superior a 365 dias. Se forem parte da retribuição, será pouco expectável que o trabalhador conserve estes ativos por um período igual ou superior a um ano, porque poderá precisar desses valores para a sua vida e do seu agregado familiar. Assim, com esta solução, as mais-valias dos trabalhadores ficam sujeitas a tributação.

Relativamente ainda ao IRS, passam a englobar-se na categoria B as operações relacionadas com a emissão de criptoativos, incluindo a mineração, ou a validação de transações de criptoativos através de mecanismos de consenso. Tendo em conta que existem já entidades especializadas nestas
operações, essa tributação pode afetar a estabilidade dos postos de trabalho e a valorização dos trabalhadores destas entidades.

Não podemos deixar de sublinhar a importância de uma reflexão sobre os custos (v.g. tributação, quotizações e contribuições) sobre o trabalho em sede de IRS e de Segurança Social.
Com efeito, o sistema devia criar incentivos para (i) promover o aumento da produtividade (por exemplo, prémios cuja atribuição regular, a existir, dependesse unicamente da dedicação e do esforço do trabalhador), (ii) gratificar o esforço adicional (por exemplo, pelo menos uma parte do trabalho suplementar) ou (iii) compensar a penosidade do trabalho (por exemplo, os subsídios de turno ou de trabalho noturno) ou as características especiais da atividade (por exemplo, despesas de deslocação, subsídios de transporte ou mobilidade geográfica).
Tal não sucede. O Estado e a Segurança Social retiram uma parte significativa destes benefícios em prol da sua sustentabilidade (é uma preocupação absolutamente legítima e relevante para toda a Sociedade). Contudo, não seria tempo depensarmos num sistema mais equilibrado que não promova a estagnação e desincentive o esforço e o mérito?
Não é necessário passar do 8 ao 80, nem se trata de uma análise binária.
Pedir um novo equilíbrio será demasiado utópico?

Em quarto lugar, uma vez que o Direito do trabalho é, também, influenciado pela situação económica do empregador, ter-se-á de atender à utilização de “criptoativos” por empregadores como uma forma de investimento ou como atividade principal. Assim, a expansão do mercado de “criptoativos” pode ter, igualmente, um impacto no desenvolvimento empresarial, na criação de novas formas de negócio e de novas profissões e postos de trabalho.

Em suma, os “criptoativos” são claramente um reflexo do desenvolvimento tecnológico com impacto no âmbito laboral. Os desafios da instabilidade, da volatilidade e das lacunas de regulação e de supervisão devem estar presentes e devem ser devidamente ponderados pelos empregadores e trabalhadores. Ainda assim, se as notícias sobre “o princípio do fim dos criptoativos” não forem manifestamente exageradas, nos próximos tempos podem surgir soluções normativas que mitiguem os riscos, mas também os benefícios, dos “criptoativos”.

Trata-se de um tema a acompanhar com atenção.