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Delivery: uma relação laboral?

By 22 Março, 2021No Comments

Associada à evolução tecnológica e em parte ao contexto pandémico, a visibilidade das plataformas digitais de distribuição de bens (Glovo, Deliveroo, Uber Eats) tem crescido a olhos vistos. Assim, a par da exponencial velocidade com que o trabalho nestas plataformas se desenvolve, tem crescido paralelamente a preocupação com as condições laborais destes vínculos, que se apresentam geralmente como precários. A debilidade associada ao não reconhecimento de relações laborais existentes não é novidade, tratando-se de um fenómeno transversal reconhecido como prioritário pelas instâncias europeias.

Ainda que se tenham identificado muitas dificuldades e desafios às relações de trabalho precário, como são a dos trabalhadores em plataformas digitais, em Portugal, pouco se tem avançado em termos regulatórios para fazer face ao absentismo de tutela.

Pela primeira vez, um Estado Membro encontra-se no epicentro das discussões sobre trabalho em plataformas digitais, no confronto entre Táxis e Uber e mais recentemente, contra o que seria expectável, Espanha apresenta-nos um grande passo na tutela destes trabalhadores: o estatuto de assalariado é agora extensível aos trabalhadores que realizam entregas ao domicílio através de plataformas digitais. Ou seja, reconhece-se pela primeira vez a existência de uma presunção de laboralidade para estes trabalhadores de entrega remunerada, intermediadas por empresas que administram o seu trabalho.

Após um contínuo tratamento do problema pelos tribunais espanhóis e de uma constante contradição entre instâncias, com tratamentos díspares de pontos como o controlo efetuado pela empresa às ferramentas informáticas de gestão de encomendas e entregas, à livre gestão de horários, o mais recente Acórdão do Supremo Tribunal Espanhol, de setembro de 2020, neste ponto, vem fixar o entendimento de que existe uma relação laboral entre um motorista de entregas e a empresa espanhola Glovo.

Entre a argumentação do tribunal destaca-se: (i) invocando anteriores decisões jurisprudenciais, o tribunal faz um paralelo com a Uber, afirmando que “a Uber não se limitava a intermediar uma relação entre os condutores e os usuários, através de uma aplicação informática, antes exercia uma influencia decisiva sobre as condições da atividade prestada pelos condutores”  (ii) “a existência de liberdade horária não exclui em todo o caso a existência de um contrato de trabalho”, (iii) “a geolocalização por GPS enquanto realizava a sua atividade, é também um indício relevante de dependência ao poder de controlo empresarial”, (iv) “a Glovo estabeleceu instruções dirigidas aos distribuidores relativas a como realizar a prestação de serviço.  A realização destas tarefas estava sujeita às regras precisas impostas pela empresa”, (v) as causas de resolução do contrato de prestação de serviços “são transcrições literais dos incumprimentos contratuais que justificam o despedimento disciplinar” previsto no Estatuto dos Trabalhadores, (vi) “A Glovo é a única que dispõe de informação necessária para a gestão do sistema de negócio”, (vii) “A Glovo tomava todas as decisões comerciais: preço dos serviços, forma de pagamento e remuneração dos distribuidores (…) evidencia que não é uma mera intermediária entre clientes finais e distribuidores”, (viii) “os meios essenciais de produção nesta atividade não são o telemóvel e a mota/bicicleta do distribuidor, mas antes a plataforma digital da Glovo” – tradução livre nossa.

A iniciativa legislativa espanhola intitulada “Ley Rider”, já de março de 2021, visa essencialmente conferir tutela laborar a estes “falsos autónomos” garantindo-lhes o salário mínimo nacional, direito a faltas e baixas por doenças, férias, subsídio de desemprego ou indemnização em caso de despedimento.

Uma importante mudança prende-se, igualmente, com a garantia que os sindicatos possam conhecer que dados dos trabalhadores utilizam as empresas que operam com algoritmos, os parâmetros e as regras nas quais se baseiam os algoritmos utilizados na tomada de decisões, as quais incidirão direta ou indiretamente nas condições de trabalho, na manutenção do posto de trabalho e na elaboração de perfis.

O Governo espanhol pretende não só cobrir os trabalhadores de entregas ao domicílio, mas também estender a aplicação desta lei às plataformas digitais de transporte como a Cabify ou a Uber, bem como a qualquer outro tipo de atividade que se baseie numa aplicação móvel.

Em comunicado, o Ministério do trabalho espanhol dá a estas empresas um prazo de 90 dias para regularizar os vínculos destes trabalhadores, vinculando-os como assalariados, por forma a beneficiarem de toda a proteção social inerente.

Em Portugal a problemática também se reveste extrema relevância. Numa situação similar, como tratariam os nossos tribunais a questão? Bastará a presunção consagrada no art.12.º do CT?  Note-se que esta presunção existe como forma de facilitar que um trabalhador veja o seu vínculo reconhecido como um contrato de trabalho através de uma “avaliação casuística” de “índices de laboralidade, “como sejam a existência de um local de trabalho, a definição do horário, ou a existência de instrumentos de trabalho fornecidos pela empresa”.

Sem desprimor pela bondade legislativa em positivar esta presunção, são reconhecidas quer pela doutrina quer pela jurisprudência as dificuldades de extensão e maleabilidade destes indícios a situações materialmente idênticas. A este propósito, algumas vozes propugnam no sentido de necessidade de uma reformulação dos indícios de laboralidade e de consequentemente adequação da presunção. Outros, mais próximos do ordenamento jurídico espanhol defendem a existência de uma presunção delimitada para estas situações.

A respeito deste problema, não será mais profícuo uma reponderação do regime de cessação do contrato de trabalho, investindo na sua flexibilização como ocorre noutros ordenamentos jurídicos?  Repare-se que as principais razões que justificam uma fuga aos vínculos laborais se prendem com exigências prementes dos mesmos e em especial com as dificuldades inerentes à cessação do contrato baseadas numa necessidade de justa causa.

Embora a questão não tenha merecido o foco do debate político, já se deixam pistas de que o assunto será colocado em cima da mesa e tratada no Livro Verde do Futuro do Trabalho. Aponta o Despacho n.º 8609/2020, que um dos pontos chave desta iniciativa se prende com o trabalho na era digital, Considerando que o progresso tecnológico, os desenvolvimentos das tecnologias da informação e da comunicação e a expansão das plataformas digitais (…) estão a transformar rapidamente o trabalho tal como o conhecemos, e suscitam desafios complexos do ponto de vista das qualificações da população, da regulação das relações laborais, bem como da proteção social”.

Repare-se que, diferentemente do que possa parecer à primeira vista, esta problemática não é meramente qualificativa, implicando em última análise, a par das repercussões de regime, um ajustar e dinamismo económico preparado para a estandardização dos vínculos numa época em que a legalidade rege a anormalidade.

Esperamos que este passo vanguardista dos “nossos irmãos espanhóis” traga consigo uma onda de debates e mudanças de paradigma no universo do trabalho tecnológico.

Gonçalo Caro | Inês Delgado | DCM Lawyers