ANÁLISE DO ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
José (nome fictício), sofreu, em junho de 1991, à data com 57 anos, acidente de trabalho do qual resultou a fratura de 2 vertebras, com paraplegia e fratura exposta na perna direita.
Após a explosão do helicóptero que pilotava e das fraturas referidas, viu ser-lhe fixada IPA (incapacidade permanente absoluta) de 100%, desde 15.07.1993.
Em 2018, aos 83 anos, José pôs termo à vida.
Após o suicídio, Ana (também nome fictício), viúva, intentou, com patrocínio do Ministério Público, por apenso ao processo de acidente de trabalho, ação declarativa de condenação, com processo especial emergente de acidente de trabalho.
O que se pretendia com a ação era a análise do nexo de causalidade entre o acidente de trabalho, ocorrido em 1993, as suas consequências e o suicídio do sinistrado.
Até à data da propositura da ação recorrida e ora analisada no acórdão, poucas vezes se havia discutidos nos tribunais portugueses, situações de suicídio dos sinistrados.
No acórdão que agora analisamos, ponderou o coletivo de juízes se se podia dar como preenchido o conceito de nexo de causalidade em ambas as vertentes que lhe são subjacentes, essenciais para configurar o suicídio como emergente de acidente de trabalho.
Do acidente resultaram lesões graves e absolutamente incapacitantes para José. Após o acidente e por causa dele, foi submetido a diversas intervenções cirúrgicas e tratamentos, sofrendo infeções e vindo o seu estado geral de saúde a agravar-se ao longo de 27 anos de enorme sofrimento.
Permanentemente lúcido, José, em algumas ocasiões, havia verbalizado a vontade de pôr termo à vida, acabando por concretizar tal vontade em 01.08.2018, altura em que se encontrava em sofrimento e desespero.
Perante este complexo quadro poderia o coletivo de juízes afirmar que o suicídio foi consequência de uma situação psíquica depressiva emergente do sofrimento decorrente das lesões sofridas em virtude do acidente de trabalho?
Como consequência do acidente de trabalho, José ficou paraplégico, sofreu amputação de uma perna, sofreu infeções sucessivas e internamentos, acabou por ficar acamado; desenvolveu escaras, viu o seu estado de saúde agravar-se progressivamente, tendo desenvolvido síndrome depressivo e exteriorizado várias vezes a vontade de pôr termo à vida. José sofreu estoicamente ao longo dos anos, tendo, por força do acidente de trabalho, deixado de exercer uma profissão que adorava e para a qual tinha méritos
reconhecidos; ficado impossibilitado de se movimentar, sem uma perna, com necessidade de ajuda para todo o tipo de tarefas, com complicações sucessivas resultantes das lesões provocadas pelo acidente e/ou dos tratamentos a que foi submetido, vendo o seu estado de saúde agravar-se nos últimos anos.
Alega a acusação que foi por isso que José, não aguentando mais, colocou termo à vida, bastando tais factos para que se considere como estabelecido o nexo de causalidade, nos termos do disposto no artº. 563º. do Código Civil.
Não se olvida que o ato de suicídio arreiga num comportamento voluntário e intencional do suicida. No entanto esta vontade encontra-se, no caso em análise, condicionada pelo quadro reativo/depressivo originado pelo acidente e pelas lesões físicas dele resultantes que limitou a autodeterminação e a racionalidade de José, que não se suicidaria se não se tivesse verificado o acidente(?).
Bem sabemos que a lei não estabelece paralelismo entre o ato intencional do suicida ou se o suicídio é cometido, estando este privado do uso da razão, limitando-se a indicar o nexo de causalidade e a determinar se a morte teve resultado direta ou indiretamente do acidente de trabalho, concluindo-se, pela causalidade adequada nos termos expressos no Código Civil. Não existe na lei norma que afaste tal nexo no caso de a morte resultar de ato voluntário do sinistrado, considerando-se não ser possível equiparar as exigências para a determinação do conceito de acidente de trabalho às exigências para o estabelecimento do nexo.
Da perspetiva do aplicador do direito, cabe perguntar se se justifica fazer distinção entre as situações em que o sinistrado põe termo à vida numa situação de ausência de vontade livre e consciente, por não suportar mais as consequências que para si resultaram do acidente de trabalho e que acarretaram para si um sofrimento atroz e insuportável.
É que, ter perfeita consciência do estado em que se encontrava é coisa distinta de ter perfeita consciência do ato que praticou e por via do qual pôs termo à vida. E para o caso em concreta fará toda a diferença.
Ao coletivo de juízes coube a seguinte análise: “Sendo certo que à data da morte e após um longo processo de manutenção da vida se encontrava em sofrimento e desespero, não nos parece que possamos afirmar que o suicídio era previsível como consequência do acidente e respetivas sequelas. Sobretudo não o era em presença do que foi a sua ligação à vida durante tal lapso de tempo, desconhecendo-se quando se iniciou a ideação suicida e porquê.”
E entenderam ser absolutamente essencial a possibilidade de estabelecer uma conexão entre o síndrome depressivo e o ato que levou à morte de José, a fim de
avaliar o que foi determinante na prática do ato de suicídio e até que ponto a vontade se mostrava condicionada pelas mazelas decorrentes do acidente.
Do ponto de vista naturalístico, e do ponto de visto jurídico, o nexo é um dado adquirido no caso em análise. Na verdade, não só o facto – acidente laboral – não deu origem ao dano morte por suicídio que ocorreu sem que se saiba o que o determinou, como também, em abstrato, o acidente não é causa idónea do dano ocorrido.
Concluí assim o Tribunal da Relação de Lisboa, no mesmo sentido que anteriormente já havia concluído o Tribunal da Relação de Coimbra: “(…)no caso, ainda que o acidente de trabalho sofrido, em 26 de Junho de 1991, por … tenha produzido lesões físicas graves e, também, psíquicas estando, em 1 de Agosto de 2018, data em que cometeu suicídio, afetado de síndrome depressivo, não existem elementos bastante para que se conclua que foi a situação psíquica depressiva que motivou o ato suicida, ou seja, que … cometeu suicídio num quadro de síndrome depressivo, determinado pelas lesões e sequelas resultantes do acidente sofrido 27 anos antes, que lhe anulou a vontade, colocando-o em situação de privação do seu livre-arbítrio e que foi, nesse contexto, que praticou o ato que conduziu à sua morte. Nesta medida, não se pode, no caso, considerar verificado o nexo de causalidade (ainda que adequada) entre o acidente, ocorrido a 26 de Junho de 1991, e a morte por suicídio, ocorrida a 1 de Agosto de 2018”.
Leonor Frazão Grego @ DCM | Littler