No pretérito dia 17.07.2023, através da sentença 453/2023, o Tribunal Superior de Justiça de Madrid (TSJM) confirmou a decisão proferida pela 5.ª secção do Tribunal Social de Madrid, de 26 de outubro de 2022, na qual se entendeu que, vigorando Convenção Coletiva, nos termos da qual os trabalhadores se obrigam a um “plus” de disponibilidade, mediante compensação correspondente, tal circunstância afasta o direito à desconexão digital.
Prevalecendo-se do disposto no artigo 34.3 do Estatuto de los Trabajadores, bem como no artigo 17 c) do IRCT aplicável, a entidade representativa dos trabalhadores veio alegar o direito destes a não serem contactados pelo empregador durante um período mínimo de 12 horas em relação ao início previsto da sua próxima jornada de trabalho, não sendo legítimo tal contacto,mesmo em situações em que este se destine a informar de alteração do início daquela jornada.
Alegou, ainda, que a ocorrência de contacto pelo empregador durante aquele período, implica a violação do direito à desconexão digital dos trabalhadores, consagrado no art. 88 da Ley Orgánica 3/2018, de 5 de diciembre.
Por sua vez, a entidade empregadora, resguardando-se no facto de compensar todos os seus trabalhadores pelo “plus” de disponibilidade, nos termos do art. 22 do referido IRCT em vigor entre as partes, bem como no facto de os supra relatados contactos terem ocorrido em situações manifestamente pontuais, alegou não ter ocorrido qualquer violação do direito à desconexão, não invocando, contudo, qualquer motivo de força maior para a sua realização.
O TSJM compartilha o entendimento de que, “Se a empresa estiver autorizada a contactar os trabalhadores para fazerem mudanças na jornada de trabalho (…) isso implica que, por vezes, essa comunicação poderá coincidir com os períodos de descanso, e se o trabalhador for remunerado deverá haver disponibilidade. Caso distinto ocorrerá se o trabalhador optar pela não disponibilidade” acrescentando ainda que esta disponibilidade acrescida implica a aceitação não apenas do prolongamento da jornada de trabalho, mas, de igual modo, que esta se inicie/termine fora do horário inicialmente previsto (conquanto sejam respeitados os limites de tempo de trabalho previstos no supra mencionado art. 17 c)).
E se fosse em Portugal?
Existem diferentes modos através dos quais as partes num contrato de trabalho, ou através de IRCT, ao abrigo da sua autonomia privada, podem organizar a execução da prestação de trabalho, incluindo, para o que ora se revela pertinente, o tempo de trabalho.
Sem olvidar os limites fixados pelo Código do Trabalho (art. 203.º, CT) encontramos nele previstos, institutos como, p. e., a isenção de horário (arts. 218.º e 219.º, CT) e a adaptabilidade (por regulamentação coletiva, individual ou grupal – arts. 204.º, 205.º e 206.º, CT, respetivamente) sendo que o caso em apreço deve enquadrar-se no regime da adaptabilidade por regulamentação coletiva (art.204.º do CT).
Assim, os limites máximos de período de trabalho poderão ser definidos em termos médios, caso em que poderão ascender até 12 horas de trabalho diário e 60 horas semanais (art. 204.º, n.º 1, CT).
Tratando-se, ainda, in casu, de uma atividade profissional caracterizada pela necessidade de assegurar a continuidade de serviço ou da produção (art. 207.º, n.º 2, al. e), ponto iii) do CT), não só a duração do trabalho é aferida em termos médios (não podendo, todavia, ultrapassar as 48 horas semanais, incluindo trabalho suplementar), como ainda, estamos perante uma exceção ao período de descanso diário mínimo de 11 horas entre jornadas de trabalho previsto pelo CT (art. 214.º, n.º 1 e n.º 2, al. d)), devendo, nesse caso, o IRCT aplicável, assegurar aos trabalhadores período equivalente de descanso compensatório, bem como, o momento em que o mesmo deve ser gozado.
Aqui chegados, cumpre perguntar: estabelecendo as partes uma compensação remuneratória pelo facto de os trabalhadores assumirem uma maior disponibilidade horária de trabalho, o seu direito à desconexão e ao repouso é violado pelo facto de eventual e esporadicamente, serem contactados pelo empregador fora do tempo de trabalho, relativamente à alteração no início da jornada de trabalho?
Teremos de concordar com a posição confirmada pelo TSJM nesta matéria e responder de forma negativa.
Não obstante a consagração expressa e relativamente recente do dever de abstenção de contacto pelo empregador, no artigo 199.º-A do CT, importa manter presente que o direito à desconexão não reveste natureza absoluta.
Diremos até, com a devida cautela, e mantendo presente que nos movemos no campo do direito laboral, que o trabalhador poderá, em certos casos, e de forma voluntária, limitar tal direito, por exemplo, mediante compensação.
Contudo, estando em causa valores dotados de dignidade constitucional (conciliação da vida profissional e pessoal e saúde do trabalhador), o legislador veio estabelecer que este direito somente poderá ceder perante “situações de força maior” (art. 199.º- A, n.º 1, in fine, CT).
Mas o que entender por “situação de força maior” parece de difícil concretização. Talvez o legislador devesse ter sido mais comedido na redação do preceito, pois corre-se o risco de incorrer numa desvalorização total de necessidades legítimas do empregador levando a que, no limite, somente em situação de “catástrofe” este possa contactar o trabalhador fora do tempo de trabalho.
Assim, entendemos que tal conceito deverá ser densificado caso a caso, considerando as concretas e legítimas pretensões quer do trabalhador quer do empregador, tendo em conta as exigências de mercado a que este se encontra sujeito e que, de igual modo, não podem ser desvalorizadas, bem como a sinalagmaticidade do Contrato de Trabalho.
Esta decisão do TSJM veio somente acentuar a complexidade do tema do direito à desconexão dos trabalhadores, longe de se poder considerar plenamente estabilizado.
Rui Rego Soares @ DCM | Littler