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Empregador ou empregado?

By 14 Dezembro, 2023No Comments

A questão de saber se pode existir uma convivência entre o facto de ser sócio-gerente de uma sociedade por quotas e, simultaneamente, trabalhador subordinado é muito controversa, designadamente no âmbito da impossibilidade de discernir vontades entre o trabalhador e o gerente, visto que estão reunidas no mesmo sujeito.

Deste modo, são elementos do contrato de trabalho a subordinação económica – que se concretiza pelo pagamento do trabalho –, mas também a subordinação jurídica – que se manifesta pelo poder que a entidade empregadora (in casu, a sociedade) tem de dar ordens e instruções para a execução do trabalho, as quais são vinculativas para o trabalhador. Portanto, em princípio, é incompatível a cumulação na mesma pessoa da posição jurídica emergente do contrato de trabalho e da qualidade de sócio-gerente de uma sociedade por quotas. Só assim não será de se provar existir uma relação de subordinação entre o sócio-gerente e a sociedade.

Assim, parte significativa da jurisprudência tem considerado que, na ausência de interdição legal dessa possibilidade, a hipótese não deve ser excluída, desde logo devido ao princípio da liberdade contratual (art. 405.º, n.º 5 do Código Civil). Ainda assim, a jurisprudência tem enfatizado a relevância do trabalhador demonstrar o modo efetivo como são realizadas ambas as funções na sociedade, para que se possa compreender, nomeadamente, como se efetiva a subordinação jurídica enquanto mero trabalhador perante a sociedade (subordinação relativamente a outros gerentes ou a deliberações da gerência exercida pluralmente).

A propósito desta questão, chama-se em particular a atenção para o recente Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 8 de novembro de 2023, com referências importantes a outras decisões jurisprudenciais.

No contexto do Acórdão, o autor intentou uma ação declarativa contra uma sociedade dona de uma escola de condução pedindo a condenação desta última a pagar-lhe créditos. No pedido, o autor considerou, no que se refere à antiguidade, um período em que tinha também sido sócio da sociedade e nela desempenhado as funções de gerente.

Relativamente à matéria de facto, o autor esteve ligado à Ré desde 1983, exercendo sempre as funções de instrutor. Contudo, no período compreendido entre janeiro de 2002 e junho de 2015 o autor foi também sócio e gerente da sociedade, até que alienou a sua participação social e renunciou à sua gerência, mantendo as demais funções que já exercia. A ré pugnou pela improcedência da ação alegando que o autor foi contratado como instrutor apenas quando cedeu a sua participação social no capital da ré e renunciou à gerência.

Em primeira instância a sentença julgou a ação parcialmente procedente. Relativamente à questão jurídica da antiguidade do autor como trabalhador da sociedade empregadora, o tribunal a quo considerou que esta não se iniciou após a escritura de cessão de quotas, mas sim que a mesma se reportava ao início da relação contratual, ainda antes do exercício dessas funções como gerente, “fazendo tábua rasa” do período compreendido entre janeiro de 2002 e 5 de junho de 2015 (período em que o autor foi sócio-gerente da sociedade por quotas). O Tribunal ad quem, por sua vez, concedeu parcialmente provimento ao recurso de apelação, alterando a sentença e reduzindo o valor em que a ré foi condenada. Não obstante reconhecer a possibilidade de haver cumulação entre as duas figuras (contrato de trabalho e gerência), o Tribunal da Relação acabou por entender que o autor não fez prova da existência de subordinação jurídica ou dos elementos constitutivos do contrato de trabalho durante o período em que foi também gerente.

Hugo Torrinha e Manuel Luís Baeta, Juristas e Mestrandos em Ciências Jurídico-Forenses (artigo realizado no âmbito do projeto Lawyers at Work desenvolvido entre a DCM | Littler e a Elsa Coimbra)