No passado mês, por via de recurso quanto a uma ação de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, o Supremo Tribunal de Justiça foi questionado quanto à regularidade do pedido por parte do Trabalhador de junção de documentos da denúncia contra ele feita, de forma anónima, no canal de denúncias interna da Empregadora, bem como de todo o processo de averiguação.
Ora, o Instrutor do procedimento disciplinar rejeitou a junção dos documentos requeridos pelo Trabalhador apresentando como motivação não só a proteção da confidencialidade das denúncias, como tal se enquadrava no Código de Ética e Conduta, e consequente obrigação de aplicação das mesmas pela Empregadora, bem como as alterações ao Código do Trabalho que visavam proteger os denunciantes.
O que será interessante será perceber como é que (brilhantemente) o douto Tribunal elaborou e escrutinou as várias camadas inerentes à situação em causa: (i) a aplicabilidade da Diretiva (UE) 2019/1937 do Parlamento Europeu e do Conselho de 23 de outubro de 2019 e da Lei n.º 93/2021, de 20 de dezembro; (ii) a imperatividade de normas do Código do Trabalho; (iii) a sujeição ao Regulamento e Código de Conduta e Ética da Empregadora; (iv) e a relevância e utilidade do pedido de junção da documentação.
(i) A aplicabilidade da Diretiva (UE) 2019/1937 do Parlamento Europeu e do Conselho de 23 de outubro de 2019 e da Lei n.º 93/2021, de 20 de dezembro:
Quanto a este tópico, será determinante relembrar que a Lei n.º 93/2021, que procedeu à transposição da Diretiva relativa à proteção de denunciantes, de facto, garante a proteção destes indivíduos através da confidencialidade da identidade, como dispõe o artigo 9.º, n.º 1 al. a). Ainda assim, e tal como provado nos factos, o processo de averiguações e elaboração dos relatórios finais o referido diploma nem sequer tinha entrado em vigor, pelo que, desde logo, se exclui a aplicação do mesmo.
(ii) A imperatividade das normas do Código do Trabalho:
Seguidamente, e não obstante a conclusão anterior, o Tribunal procedeu à verificação de normas que no ordenamento jurídico português pudessem fundamentar a recusa. Contudo, e se atentarmos à Lei 73/2017, de 16 de agosto que alterou o Código do Trabalho quanto à prevenção da prática de assédio, nada é referido sobre a obrigatoriedade de manutenção do anonimato dos indivíduos que denunciem práticas ilícitas.
(iii) A sujeição ao Regulamento e Código de Conduta e Ética da Empregadora;
Contudo, e ainda que a legislação laboral nada regule sobre a confidencialidade e anonimato da denúncia (tendo em conta o caso concreto, claro) não poderíamos deixar de fazer menção à importância e inerente poder regulamentar que surge pela existência do Código de Conduta, quase numa tentativa de descartar todas as possibilidades existentes.
Ainda que dotados de generalidade e abstração necessários num Regulamento Interno, a hierarquia de fontes sempre ditará que a lei assume a primazia normativa e imperativa, face a outras fontes de direito de hierarquia inferior, como tal é o Regulamento. Ora, tal consideração resvala na limitação ditada pela lei de necessidade de, neste caso, a junção de documentos necessários e eficazes à descoberta da verdade e prova dos factos alegados na Nota de Culpa e Resposta à mesma.
Mais, esta decisão revisita uma decisão jurisprudencial relevante, ainda que não totalmente idêntica, quanto à possível violação dos dados pessoais do denunciante, mais não fosse, no limite, a frustração das expetativas do anonimato. Refere então que a proibição do tratamento de dados pessoais presente no Regulamento Geral de Proteção de Dados será sempre excecionada num processo judicial.
(iv) Relevância e utilidade do pedido de junção da documentação.
Por fim, numa última “tentativa” de demonstração da desnecessidade de junção de documentos, o Tribunal acaba por mencionar o artigo 356.º, n.º 1 do Código do Trabalho no juízo necessário realizado pelo Instrutor quanto às diligências probatórias “patentemente dilatórias ou impertinentes”. Ainda que assim fosse, o despacho judicial proferido pelo Juízo do Trabalho bem referiu que aquando da invocação por parte do Trabalhador da caducidade do poder disciplinar, só poderia haver prova deste mesmo facto tendo por base a denúncia e processo de averiguações que se tornaram a base do procedimento disciplinar, confirmando a prevalência da necessidade de prova em face do anonimato.
Considerando a atualidade da Diretiva e das normas nacionais de transposição, sempre terá de se afirmar que situações como as do caso em apreço serão cada vez mais recorrentes, aguardando-se o posicionamento dos tribunais quanto à dicotomia de proteção do anonimato e confidencialidade ao abrigo do regime geral de proteção dos denunciantes por um lado e as garantias de defesa dos trabalhadores visados no âmbito de procedimentos disciplinares laborais.
Filipa Lopes Galvão e Maria Beatriz Silva @DCM | Littler