“Estava escrito” (cfr. Lei 93/2019 de 4 de setembro) que a partir do dia 1 de outubro deste ano, todos os bancos de horas individuais estariam extintos, não obstante a “resistência” que a Comunidade exerceu diante do Governo português. A flexibilidade do tempo de trabalho foi tema constante ao longo do período de 2019/2020 e, no atual paradigma COVID-19 (de uma violenta crise social, económica e financeira) assume especial preponderância. Com efeito, foi gerado um dever de adaptação na esfera de todas as empresas que consagravam o banco de horas individual no seio dos seus recursos humanos.
Em 2020, com a plenitude da medida tomada em 2019, revela-se importante distinguir o banco de horas individual (aquele estabelecido por acordo das partes, sem recurso à negociação coletiva) do grupal; sendo que este último passou a ser possível com algumas exigências: as empresas estão, assim, habilitadas a aplicar o banco de horas, contudo limitadas a determinados trâmites.
Com respeito aos principais aspetos do art. 208.º-B, à luz do art. 10.º da Lei 93/2019 de 4 de setembro, determina-se o seguinte, para o banco de horas grupal: (i) “o regime de banco de horas pode ainda ser instituído e aplicado ao conjunto dos trabalhadores de uma equipa, secção ou unidade económica, desde que aprovado em referendo pelos trabalhadores a abranger (….)” (.º2); (ii) o período normal de trabalho pode ser aumentado até duas horas diárias e pode atingir 50 horas semanais, tendo o acréscimo o limite de 150 horas por ano (n.º3); (iii) deve o empregador elaborar o projeto de regime de banco de horas, o qual deve regular o âmbito de aplicação, indicando a equipa, secção ou unidade económica a abranger e, nestas, os grupos profissionais excluídos, se os houver, o período, não superior a quatro anos, durante o qual o regime é aplicável e os aspetos referidos no art. 208.º/4 (n.º 4); (iv) o empregador publicita o projeto de regime de banco de horas nos locais de afixação dos mapas de horário de trabalho e comunica-o aos representantes dos trabalhadores e ao serviço com competência inspetiva do ministério responsável pela área laboral, com a antecedência mínima de 20 dias em relação à data do referendo (n.º5); (v) caso o projeto de regime de banco de horas seja aprovado em referendo por, pelo menos, 65 % dos trabalhadores abrangidos, o empregador pode aplicar o referido regime ao conjunto desses trabalhadores (n.º6); (vi) havendo alteração na composição da equipa, secção ou unidade económica, o comando anterior aplica-se enquanto os trabalhadores que permanecem forem pelo menos 65 % do número total dos trabalhadores abrangidos pela proposta de referendo (n.º7); (vii) caso o número de trabalhadores abrangidos pelo projeto de regime de banco de horas seja inferior a 10, o referendo é realizado sob a supervisão do serviço com competência inspetiva do ministério responsável pela área laboral – ACT (n.º9); (viii) a aplicação do regime do banco de horas cessa se, decorrido metade do período de aplicação, um terço dos trabalhadores abrangidos solicitar ao empregador novo referendo e o mesmo não for aprovado nos termos do n.º 6, ou não for realizado no prazo de 60 dias (n.º 10); (ix) e, nesse caso, a aplicação do regime do banco de horas cessa 60 dias após a realização do referendo, devendo a compensação do trabalho prestado em acréscimo efetuar-se neste prazo (n.º11); (x) por fim, Caso o projeto de regime de banco de horas não seja aprovado em referendo, o empregador só pode realizar novo referendo um ano após o anterior (n.º12).
Importa referir que a figura do banco de horas individual já era alvo de diversas críticas, tomando por exemplo a elevação do silêncio do trabalhador (naturalmente constrangido) a declaração negocial (cfr. Liberal Fernandes, O trabalho e o tempo: Comentário ao Código do Trabalho, Biblioteca RED, 2018, pp. 177-178). Além do mais, o legislador já parecia estar inclinado ou ter preferência pelo banco de horas com natureza coletiva.
Chegando a este ponto, revela-se necessário ponderar e questionar se: (i) com a decisão do legislador, a relação laboral, em contexto organizativo, está ou não mais equilibrada ou “democratizada” (um novo peso para o “referendo laboral”?); (ii) com a mesma opção legislativa, é conferido um novo relevo à negociação coletiva (?) – negociação esta que, com os anos, tem estado em declínio. No fundo, se os trabalhadores e respetivos representantes passam a ter um maior poder de decisão (ou não) na organização empresarial (?).
Num outro prisma, podemos questionar, ainda, se: (i) uma determinada franja de trabalhadores é (ou não) prejudicada com a eliminação do banco de horas individual, nomeadamente para efeitos de articulação da sua vida privada e familiar com um “crédito de horas” (?); (ii) as empresas, neste período específico, necessitam ou não de uma maior flexibilidade organizativa em pleno clima pandémico, num cenário de (re)abertura do mercado (?). As empresas vão passar a utilizar outros mecanismos de regulação do tempo de trabalho, nomeadamente o trabalho suplementar (art. 226.º e ss. do CT)? As empresas vão sofrer mais encargos, em especial para efeitos de tributação? Faz sentido esta opção em tempos de crise? Não podia o legislador ter optado por manter uma solução transitória (a la COVID-19) para o banco de horas individual? Não podia, em alternativa, ter estabelecido o banco de horas individual como solução de “charneira” ou como medida subsidiária ao banco de horas grupal? Ter suprimido tão só a presunção de aceitação do trabalhador?
Estaremos atentos aos próximos desenvolvimentos.
Tiago Sequeira Mousinho | Inês Cruz Delgado | DCM LAWYERS