As novas tecnologias e a sua repercussão no mundo do trabalho: revelam-se, uma vez mais, em atividades mais antigas que as inovações tecnológicas. Ser “entregador” de pizza ao domicílio, algo que temos há largos anos, ou, se quisermos, outros produtos como o leite, antes bastante comum, agora com introdução de tracking das entregas, quais são os limites?
Sobre temas conexos vide “O “GPS” e o controlo da atividade do trabalhador”, “A videovigilância: método de controlo dos trabalhadores?” e “A privacidade no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem: casos recentes”.
No passado dia 8 de fevereiro de 2021 o Supremo Tribunal espanhol, Sala de lo Social, Madrid confirmou, por sentença, a nulidade do projeto Tracker da Telepizza. O projeto consistia em acompanhar o trajeto da entrega desde que o “entregador” saía da loja até chegar à casa do cliente, por forma a melhor perceber o tempo real que era despendido nesta viagem e, ainda, por forma, a reforçar a confiança do cliente, tornando-o mais próximo. Da parte dos repartidores de pizza o que implicava? (i) Que dispusessem de um smartphone com acesso à internet; (ii) que o smartphone suportasse a aplicação criada pela Telepizza para o efeito; (iii) que se ligassem à aplicação no início da laboração, entenda-se do horário de trabalho, mantendo os dados móveis e a localização ligada; e (iv) que no fim do horário de trabalho desligassem a aplicação.
A empresa daria aos trabalhadores uma compensação monetária pelas despesas de internet, sendo que os repartidores que fizessem entregas a pé, devido à proximidade com as lojas não estariam, pelo menos inicialmente, obrigados a utilizar a aplicação. O projeto previa ainda a introdução de uma cláusula no contrato de trabalho, na qual se fazia responsável o repartidor por qualquer falha/impedimento de aceder à aplicação para ativar o sistema de tracking, ou seja, se por exemplo o telemóvel necessitasse de reparação o trabalhador disporia de dez dias para reparar o telemóvel. Se no décimo primeiro dia o telemóvel não estivesse reparado, haveria lugar à suspensão do contrato de trabalho, com perda de remuneração, pelo período máximo de dois meses. Findo o qual, não estando a situação de acesso reposta, importaria mesmo a resolução do contrato de trabalho.
O Supremo Tribunal espanhol declarou a nulidade do projeto, um vez que (i) vulnerava o direito à privacidade dos trabalhadores/repartidores, por não passar o juízo de proporcionalidade, pois poderia lançar mão de medidas menos intrusivas; (ii) se violaram os deveres de informação e consulta prévia dos trabalhadores; (iii) incorreu em abuso de direito, porquanto, responsabilizava o trabalhador pela impossibilidade de aceder à aplicação, obrigando-o mesmo a garantir bateria para o horário de trabalho e tráfego de dados móveis suficiente; (iv) aportava aos trabalhadores uma compensação económica mínima, para que estes dispusessem de um telemóvel (smartphone) com acesso permanente à internet; e (iv) não foram superados os critérios constitucionais e legais, pois existiriam outras formas de executar o sistema de tracking.
O Tribunal não questionou que a geolocalização pudesse ser um meio adequado ou idóneo para melhorar os tempos de entrega, para atingir maior competitividade no mercado e estreitar a proximidade com o cliente através do acompanhamento das entregas, mas considera, antes, que o projeto, tal como estava configurado, era contrário ao direito, às normas legais, era desproporcional. (cfr. Noticias Judiciales “El Tribunal Supremo confirma la nulidad del proyecto de Telepizza que obliga a los repartidores a aportar su móvil personal para su geolocalización”)
Os Tribunais portugueses chegariam a semelhantes conclusões?
Olhando ao caminho doutrinal, ao caminho jurisprudencial e à legislação nacional sobre a matéria, tudo aponta para uma resposta semelhante àquela que encontramos no ordenamento jurídico espanhol. Os fins a prosseguir pela empresa e os direitos dos trabalhadores pesados na balança, fazem-na pender, no caso concreto, para a salvaguarda dos direitos dos trabalhadores, em detrimento do princípio da livre iniciativa económica (os interesses de gestão da empresa). Porquanto, com meios menos intrusivos se poderia alcançar, igualmente, os fins que a empresa propõe. Por exemplo, a disponibilização de telemóveis aos repartidores poderia originar uma resposta diferente, ou mesmo, sendo realista, uma contrapartida económica mais significativa pelos gastos com a internet móvel e, na verdade, num primeiro momento com a aquisição de um smartphone. Pois, em nossa opinião e ainda que o smartphone seja um bem de que a maioria da população dispõe, não se pode partir do princípio de que todos os trabalhadores têm um smartphone, o querem ou até têm condições de o ter.
Continuamos atentos, com a certeza de que nestas questões não temos uma resposta unânime, ou tão pouco uma resposta a dar sem ressalvas.
Ana Amaro | DCM Lawyers