A vizinha Espanha é bastante frutífera em cenários que desafiam a aplicação do Direito do trabalho.
Recentemente, tivemos notícia de um despedimento que ocorrera em virtude de uma trabalhadora que, em plena pandemia de COVID-19, num concerto com cerca de 2.000 pessoas e sem a sua máscara ou outro tipo de proteção. Na fotografia, a trabalhadora encontrava-se, ainda, entre um grupo de pessoas, sendo que as autoridades de saúde espanholas recomendavam a não realização de agrupamentos. A trabalhadora foi fotografada no concerto e a sua fotografia publicada em redes sociais.
Como consequência deste ato, além do contágio da própria, dois dos seus colegas foram contaminados e todo o departamento foi colocado em quarentena. O Tribunal espanhol concluiu que ser-se irresponsável não integra o conceito de justa causa, não se podendo atender à “violação das normas anti covid” quando se está no domínio da vida privada.
Em Portugal, a “irresponsabilidade” poderá ser perspetivada em dois grandes temas: (i) por um lado, a irresponsabilidade demonstrada através da quebra dos deveres acessórios de zelo e diligência (art. 128.º/1, al. c) do CT); e (ii) por outro, através da justa causa extralaboral, quando o trabalhador toma determinadas condutas no âmbito da sua vida privada que têm reflexo na sua vida profissional, em especial diante da imagem do empregador.
No domínio da jurisprudência portuguesa, o Ac. do TRL de 11.07.2019 (Filomena Manso), proc. 15070/18.T8LSB.L1-4, refere-nos que “os actos da vida privada do trabalhador não podem ser valorados em si mesmos mas apenas nos reflexos que estes possam ter na estrutura empresarial ou na relação de confiança entre trabalhador e empregador”. Em causa estavam mensagens de Facebook que continham ameaças de uma trabalhadora de limpezas de uma escola dirigidas a uma aluna.
É de este último sentido que a sentença espanhola se aproxima. Até que ponto é possível sancionar disciplinarmente factos da vida privada do trabalhador, maxime aplicando a sanção do despedimento? Até que ponto, os requisitos legais que encontramos no art. 351.º/1 e 3 do CT podem valer fora do tempo e local de trabalho?
O crivo parece ser depender da possibilidade de tal conduta da vida privada ter (ou não) uma repercussão direta ou indireta no normal funcionamento da empresa e, eventualmente, na própria prestação de trabalho.
No caso analisado pela jurisprudência portuguesa, além da imagem da empresa que parece ficar afetada, aquando da “postagem” em redes sociais, parece existir uma afetação direta no “congelamento” de um departamento inteiro, tanto por contágio como por quarentena preventiva.
Porém, o outro lado da moeda não é de se menosprezar, nomeadamente os aspetos que respeitam a vida privada ou familiar do trabalhador, constituindo especiais direitos de personalidade (art. 16.º do CT).
Podemos ainda questionar: (i) revela-se necessário saber se a trabalhadora conhecia do seu estado de saúde?; (ii) estaria a trabalhadora, no âmbito dos deveres acessórios de boa fé, vinculada à realização de um teste antes de regressar ao trabalho?; (iii) no mesmo sentido, será ponderado afirmar que a trabalhadora deveria avisar o empregador e demais colegas de trabalho de que havia participado numa “festa desprotegida contra o Covid-19”?; (iv) sendo que a trabalhadora regressou infetada para o local de trabalho, tendo plena consciência dos riscos agravados de contágio e infeção, gerados pela própria, não existirá um comportamento que afeta diretamente o serviço, sugerindo a interpretação-aplicação direta do art. 351.º/1 e 3 do CT (justa causa laboral)?; (v) as respostas a todas estas questões seriam diferentes se a trabalhadora exercesse o seu direito constitucional de manifestação (art. 45.º da CRP) “anti máscara”?
As dúvidas parecem não acabar. Sabemos que, quanto a esta última pergunta, existe um caso alemão em que um clube de basquetebol despediu um jogador, precisamente, por este ter participado numa manifestação “anti máscara” e por ter ignorado o protocolo sanitário nacional alemão da COVID-19, expressando publicamente as suas ideias e teorias. Segundo este clube, o jogador figurava como um risco de contágio para colegas e rivais desportivos, incumprindo o seu contrato de trabalho.
Posto isto, qual o limite da imputação de consequências pelos factos do domínio da vida privada do trabalhador?
Tiago Sequeira Mousinho | DCM LAWYERS