A Lei nº 93/2021, de 20 de dezembro, visa, como se sabe, transpor para a ordem jurídica portuguesa a Diretiva nº 2019/1937, de 23 de outubro de 2019. Esta Diretiva salientou-se, antes do mais, pelo número enorme de “considerandos” – nada menos de 110 –, que ocuparam 17 páginas da publicação oficial. Alguns desses considerandos nem sequer tinham (ou têm) correspondência direta no articulado. Constituem um frondoso bosque de que emerge o conjunto de normas orientadoras para os regimes nacionais de proteção de denunciantes, que compõe o próprio corpo da Diretiva.
A lei nacional, elaborada com a manifesta preocupação de ecoar o mais fielmente possível a mensagem do legislador europeu, suscita numerosos problemas de interpretação e aplicação. O nosso interesse incide, porém, neste momento, sobre o molho de “considerandos” que a Diretiva colocou sobre a mesa. Que valor jurídico deve ser-lhe atribuído?
Se a Diretiva fosse um conjunto de normas suscetíveis de aplicação direta – como uma lei nacional –, seria forçoso reduzir esse valor ao de um elemento adjuvante de interpretação do articulado, remetendo à inutilidade todos os recitals que nele não tivessem replicação direta, isto é, que não assumissem aí verdadeira feição normativa. Mas a Diretiva – esta como quase todas – não tem efeito regulatório imediato, constitui somente uma orientação, uma diretriz endereçada ao legislador nacional, com prazo definido para a sua concretização.
Sendo assim, pode dizer-se que todo o texto – “considerandos” incluídos – merece atenção semelhante. Os recitals contribuem para a clarificação das preocupações e dos propósitos do legislador europeu, e desenvolve um conjunto de valorações e racionalidades que o legislador nacional deve também assumir na construção do regime transpositivo. Neste sentido, pode dizer-se que os considerandos são tão importantes como o articulado; tudo está em que este seja transposto em harmonia com os fundamentos constantes do preâmbulo.
Um bom exemplo é oferecido pelo texto de Tiago Mousinho publicado há dias neste blogue, sobre denúncias respeitantes a infrações laborais. No articulado da Diretiva, elas são omitidas, mas um “considerando” aponta na sua direcção. No entanto, a Lei nº 93/2021, fiel ao articulado da Diretiva mas infiel aos “considerandos”, guarda silêncio sobre elas.
De resto, neste preciso domínio – o das violações de regras laborais –, pode bem perguntar-se se o novo e apregoado regime legal de proteção de denunciantes, oriundo de uma diretiva que consumiu longos meses de tortuosas negociações, oferece algum valor acrescentado relativamente ao que a lei do trabalho portuguesa já estabelecia a propósito de eventuais condutas retaliatórias dos empregadores.
António Monteiro Fernandes, Of Counsel @ DCM | Littler