A questão não é nova, mas tornou-se cada vez mais frequente, sendo colocada por empregadores, nacionais e estrangeiros, mas principalmente por trabalhadores.
David Carvalho Martins, Managing partner da DCM | Littler, para a Human Resorces
Por outro lado, recentemente, foram divulgados alguns casos de compra e venda de imóveis com o pagamento em cripto-moedas, o que dá sinais de uma cada vez mais ampla aceitação. Contudo, em simultâneo, tomamos conhecimento de flutuações agressivas de valor que sugerem cuidado na apreciação destes temas. Há que tomar, ainda, em consideração o grau de (i)literacia financeira e digital dos destinatários. Sobre este último ponto, seria interessante que associações de empregadores e sindicatos suscitassem o debate e procurassem esclarecer os respetivos associados.
Ter cuidado na apreciação dos temas não significa – não pode traduzir-se – numa pura e simples recusa da realidade, nem numa negação militante da sua entrada no âmbito laboral.
As cripto-moedas, com origem em 2009, consistem, em termos genéricos, num sistema de pagamento digital “peer-to-peer” (ponto a ponto), garantido e verificado através da tecnologia “blockchain”, ou seja, sem recurso ou intermediação de bancos ou de outra instituição financeira.
Coloca-se a questão de saber por que razão o pagamento de remunerações – ou de benefícios – em cripto-moedas tem vindo a ser suscitado e implementado. Os motivos são seguramente muito diversificados, mas arriscaríamos duas razões preponderantes: (i) a valorização excecional das cripto-moedas desde a sua criação e (ii) o carácter excessivo dos custos associados ao trabalho.
Do lado dos trabalhadores, devemos considerar o IRS (com uma progressividade agressiva desde patamares relativamente reduzidos) – que se torna visível mensalmente na retenção na fonte – e as quotizações para a Segurança Social (no total, estas parcelas podem traduzir-se entre 11% e mais de 50% da remuneração bruta mensal). Dir-se-á que analisar o peso da tributação através da retenção na fonte é uma forma de enviesar o debate, porque deveríamos olhar para a tributação global aquando da entrega da declaração anual de IRS. Contudo, a maioria das pessoas não vive no médio-prazo (5 a 8 meses depois do termo do ano civil a que a declaração de IRS diz respeito, isto é, no momento do eventual reembolso do IRS pago em excesso no ano anterior), mas no imediato, ou seja, com o valor líquido que recebe no final de cada mês.
Do lado dos empregadores, encontramos as respetivas contribuições para a Segurança Social e para os fundos de compensação do trabalho, bem como o prémio do seguro de acidentes de trabalho (no total, devemos considerar cerca de 26% sobre a remuneração mensal bruta, aproximadamente). Poderíamos somar, ainda, outros custos laborais, embora não estejam diretamente relacionados com o valor da remuneração (por exemplo, as quantias relativas à segurança e saúde no trabalho).
A procura de meios, legítimos, para aumentar a liquidez das remunerações, sem aumentar exponencialmente os respetivos custos, é um caminho economicamente racional e justificado e deveria ser o primeiro passo no disseminado debate sobre a valorização do trabalho.
Contudo, a defendida valorização do trabalho tem consistido apenas no aumento dos salários, sabendo-se que esse caminho amplia as despesas dos empregadores sem se traduzir num incremento proporcional do valor líquido auferido pelos trabalhadores. A título de exemplo: (i) no melhor dos cenários (isto é, assumindo que o trabalhador está isento de IRS), por cada € 1,00 de aumento, o trabalhador recebe € 0,89 e o empregador paga € 1,26 (o trabalhador recebe cerca de 70% do custo global); e (ii) no polo oposto (isto é, assumindo um trabalhador com a uma taxa de retenção na fonte mais elevada), por cada € 1,00 de aumento, o trabalhador recebe € 0,46 e o empregador paga € 1,26 (o trabalhador recebe cerca de 36% do custo global).
Para além de não penalizar o recurso às cripto-moedas, talvez fosse tempo de rever, pelo menos, as bases de cálculo do IRS e da Segurança Social para (i) promover o aumento da produtividade (por exemplo, prémios cuja atribuição regular, a existir, dependesse unicamente da dedicação e do esforço do trabalhador), (ii) gratificar o esforço adicional (por exemplo, pelo menos uma parte do trabalho suplementar) ou (iii) compensar a penosidade do trabalho (por exemplo, os subsídios de turno ou de trabalho noturno) ou as características especiais da atividade (por exemplo, despesas de deslocação, subsídios de transporte ou de mobilidade geográfica).
Dir-se-á: esse caminho levaria a que nada – ou quase nada – ficasse sujeito a tributação. Não é verdade. Em qualquer caso, poderiam ser definidos limites de isenção, atendendo por exemplo a práticas sectoriais ou a análises do custo de vida. Há, no mínimo, um debate a fazer.
Por outro lado, não podemos esquecer que as mudanças no sistema da Segurança Social podem ter reflexos diretos na sua sustentabilidade e na sua capacidade de responder a crises semelhantes àquela que assistimos nos últimos dois anos. Sendo uma “almofada” vital para a economia que assenta, em regra, diretamente nas quotizações dos trabalhadores e nas contribuições dos empregadores, os ajustamentos destinados à valorização do trabalho poderiam passar, numa primeira fase, pelo sistema fiscal.
No que toca à questão colocada, devemos ter presente que a retribuição pode ser paga em dinheiro ou em espécie. Sendo paga em dinheiro, deve fazer-se, em regra, em moeda que tenha curso legal no País à data que for efetuado o pagamento e pelo valor nominal que a moeda tiver nesse momento. Ora, as cripto-moedas não são, por agora, moedas com curso legal ou poder liberatório em Portugal. Embora não possam ser consideradas nesta parte, suscita-se a possibilidade de as cripto-moedas serem enquadradas como retribuição em espécie. A ser assim, cabe referir que a parte em espécie não pode, em regra, exceder a parte em dinheiro e deve “destinar-se à satisfação de necessidades pessoais do trabalhador ou da sua família e não lhe pode ser atribuído valor superior ao corrente na região”.
Se se tratar de um benefício que não é retribuição (por exemplo, um prémio excecional), parece existir um outro espaço de atuação. Em qualquer dos casos, é muito importante reforçar os deveres de informação.