Não é novidade que o regime geral previsto no Código do Trabalho muitas vezes não é suficiente para suprir necessidades e responder a algumas questões que se colocam na prática do dia-a-dia de certas profissões mais específicas.
Por estas razões que se entendeu por necessário a criação de vários regimes legais específicos, com regras personalizadas para cada situação fora do considerado “normal”, mas tendo sempre as regras do Código do Trabalho por base como direito subsidiário.
Tal foi o que aconteceu com os regimes do trabalho de serviço doméstico, o trabalho portuário e a bordo de navios ou embarcações de pesca, os profissionais de espetáculos e os praticantes desportivos. A respeito destes últimos, têm surgido algumas questões, nomeadamente sobre a sua completude quanto ao regime aplicável a jogadoras profissionais, como já foi por nós indagado em artigos passados (O (un)fair-play desportivo: uma discriminação?).
Contudo, ainda na senda do desporto, surge agora a controvérsia do árbitro desportivo – estará o mesmo sujeito ao regime constante da Lei n.º 54/2017, de 14 de julho, ou será necessária a determinação de um novo regime legal que atribua a devida proteção laboral?
Ora, o âmbito de aplicação da referida lei é claro: aplica-se aos contratos de trabalho do praticante desportivo e do contrato de formação desportiva, cfr. art. 1.º da Lei n.º 54/2017. Parece que se coloca assim uma questão prévia, integrará o árbitro desportivo o conceito de “praticante desportivo”?
Considerando que os árbitros desportivos se encontram sujeitos a determinados regulamentos, competindo entre si, sendo claro que estaremos perante uma modalidade desportiva individual, parece possível considerar o árbitro desportivo como praticante desportivo, e, portanto, sujeito, a um primeiro momento, à Lei n.º 54/2017.
De facto, existe uma relação de subordinação laboral na medida em que o árbitro presta a sua atividade a uma entidade (as federações desportivas), sob a sua autoridade e direção, em troca de uma remuneração.
Mais, da relação existente surgem deveres e direitos de ambas as partes, existe um período normal de trabalho, ao qual está subjacente uma preparação técnica e física para os jogos para os quais são nomeados; aliás, a própria nomeação do árbitro demonstra o exercício do poder de direção das federações desportivas sobre os árbitros, sendo que a prestação da atividade destes últimos encontra-se dentro da autonomia técnica para o desempenho das funções (art. 116.º do Código do Trabalho).
Por fim, importa ainda fazer referência ao poder disciplinar das federações desportivas em relação aos árbitros desportivos, estando os segundos sujeitos a um conjunto de deveres sob pena de poderem ser alvos de um procedimento e consequente sanção disciplinar.
Porém, importa tecer algumas considerações sobre a aplicação da Lei n.º 54/2017 aos árbitros desportivos: não obstante esta possibilidade, a uma primeira vista, a mesma aparenta ser insuficiente para regular de forma completa e salvaguardar a posição da profissionalização do árbitro desportivo, na medida em que foi claramente moldada à realidade do jogador, deixando de fora peças importantes no mundo do desporto profissional.
A não existência de um contrato de trabalho específico aplicável aos árbitros desportivos afigura-se como uma forte lacuna quando comparado com os praticantes desportivos profissionais, quer no mundo do Direito Laboral quer no mundo do Direito do Desporto.
Assim, afigura-se como imprescindível e indispensável a criação de um regime jurídico específico que possa regular e proteger a relação dos árbitros desportivos com o mundo profissional, considerando que a possibilidade de existência de um contrato de trabalho dos árbitros desportivos apenas se poderá aplicar às competições de alto rendimento, dada a complexidade da prestação da atividade neste panorama, à semelhança dos praticantes desportivos profissionais.
Marta Coelho Valente, Gonçalo Rodeia Gomes @ DCM | Littler