Um acórdão bastante recente do Tribunal de Justiça da União Europeia – pronunciado no processo C-485/20, HR Rail SA, com data de 10 de fevereiro último – veio colocar em evidência um grave problema latente na legislação laboral nacional: o das consequências jurídico-práticas da incapacidade superveniente e definitiva do trabalhador para a prestação da atividade contratada. O tratamento dado a tais casos parece posto em causa pelo direito europeu.
Desde logo, o mecanismo utilizado pelo legislador – o da caducidade do contrato de trabalho – mostra-se claramente disfuncional, quer pela situação desumana em que coloca o trabalhador (sem direito, sequer, a uma compensação pela antiguidade), quer pela grave incerteza que lança sobre o empregador quanto ao modo de proceder em tais circunstâncias. Noutros ordenamentos jurídicos, a questão põe simplesmente em jogo a licitude de um eventual despedimento (com direito a compensação), uma vez que as consequências da incapacidade dependerão, na generalidade dos casos, de um juízo e de uma decisão do empregador. No caso português, a tipicidade das causas de despedimento não parece comportar a hipótese discutida.
Por outro lado, à luz da lei nacional, a referida incapacidade, fora dos casos de acidente ou doença profissional, não obriga o empregador a procurar oferecer ao trabalhador uma ocupação compatível com a capacidade remanescente. E é este o ponto a que se refere o acórdão a que aludimos no início.
Tratava-se de um agente de manutenção dos caminhos de ferro belgas, a quem foi a certa altura diagnosticada uma doença cardíaca que exigiu a colocação de um pacemaker, dispositivo sensível aos campos eletromagnéticos emitidos nas linhas férreas. Por isso, o referido trabalhador ficou definitivamente incapacitado para as funções para as quais fora contratado, e para quaisquer outras que implicassem exposição a campos eletromagnéticos. Em consequência, foi alvo de um despedimento.
Ora a Diretiva 2000/78/CE, de 27 de novembro de 2000 (quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na atividade profissional) inclui uma disposição (art. 5) que, visando “garantir o respeito do princípio da igualdade de tratamento relativamente às pessoas deficientes”, obriga os empregadores a realizar “adaptações razoáveis” para que uma pessoa nessas condições “tenha acesso a um emprego, o possa exercer ou nele progredir”, desde que daí não resultem encargos “considerados desproporcionados”.
O tribunal perante o qual o trabalhador impugnou o despedimento, entendendo que as suas condições de saúde permitiam qualificá-lo de “deficiente”, decidiu submeter ao Tribunal de Justiça a questão prejudicial de saber se a referida disposição da Diretiva devia ser interpretada no sentido do reconhecimento de uma “obrigação de recolocação” do empregador, sempre que não estivessem em causa “encargos desproporcionados” para ele.
O Tribunal de Justiça decidiu em sentido afirmativo, considerando que, do art. 5 da Diretiva, decorre que “um trabalhador (…) que, devido à sua deficiência, foi declarado inapto para exercer as funções essenciais do posto de trabalho que ocupa, seja afetado a outro posto de trabalho para o qual tenha as competências, as capacidades e as disponibilidades exigidas, desde que tal medida não implique um encargo desproporcionado para a entidade patronal”.
Esta decisão – sem esquecer a margem de indeterminação inerente à noção de “encargo desproporcionado” — parece abalar desde os alicerces o tratamento dado a tais casos nos termos da lei portuguesa, inculcando mesmo a necessidade da sua alteração para se harmonizar com o direito europeu.
António Monteiro Fernandes, Of Counsel @ DCM | Littler