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Reflexões sobre o conceito de “justa causa” no despedimento

By 19 Junho, 2023No Comments

No dia 25 de Abril de 2023, o Supremo Tribunal da China validou o despedimento por justa causa de um funcionário por passar muito tempo na casa de banho, durante o dia de trabalho, após, em 2014, este ter sido submetido a cirurgia, devido a uma doença anorretal. O Supremo Tribunal decidiu que a demissão é “legal e eficaz”, por se tratar de uma conduta “inadequada” do trabalhador no local de trabalho, considerando que o tempo prolongado na casa de banho excedeu as necessidades fisiológicas normais e violou as normas estabelecidas pelo empregador.

Será que este caso seria decidido da mesma forma em Portugal?

Como é sabido, é proibido o despedimento sem justa causa, atendendo ao princípio da segurança no emprego, plasmado no art. 53º da CRP e art. 338º CT, em que se proíbe os despedimentos sem justa causa, arbitrários, discricionários, ou seja, ad nuntum, sem razão suficiente e socialmente adequada.

No caso em apreço, estamos perante um eventual despedimento por justa causa subjetiva, atendendo ao facto de se proceder a uma análise da culpa do trabalhador. De modo a responder à questão suscitada, versar-nos-emos na noção legal do art. 351.º CT, nos termos do qual a justa causa pressupõe um “comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho”, tratando-se, por isso, de um incumprimento contratual. 

O despedimento por facto imputável ao trabalhador, enquanto sanção disciplinar, como resultante do art. 328.º n.º 1 al. f) CT, deve ser um meio a recorrer em última instância, já que apenas deve ser ponderado, nos casos em que não seja possível aplicar outra função conservatória (repreensão, perda de dias de férias, suspensão do trabalho com perda de retribuição, entre outros- art. 328.º  CT).

A existência de justa causa exige a verificação cumulativa de dois requisitos: por um lado, um comportamento ilícito e culposo do trabalhador, violador de deveres de conduta ou de valores inerentes à disciplina laboral, grave em si mesmo e nas suas consequências; por outro lado, que o referido comportamento torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação laboral, quando ocorra uma situação de absoluta quebra de confiança entre o empregador e o trabalhador. Terá sido esse o caso? Neste sentido, cabe atender ao grau do prejuízo suportado na esfera do empregador.

É importante referir que o grau de culpa deve ser aferido atendendo a um critério objetivo, de acordo com a diligência de um bom pai de família, conforme resulta do disposto no art. 487.º n.º 2 CC.

Mas pergunte-se, até que ponto se deve responsabilizar um trabalhador por uma condição médica, fora do seu alcance, que o impossibilita de realizar de forma produtiva a sua função? Pode sequer falar-se em culpa nestes casos?

Uma possível via para justificar uma situação de justa causa no caso vertente seria a de considerar que o trabalhador teria incumprido os seus deveres de informação, designadamente no que concerne ao seu estado de saúde.

O trabalhador, por se encontrar sujeito ao poder de direção do empregador, torna-se a parte mais fraca desta relação jurídica, carecendo de maior proteção. No entanto, não fica isento de responsabilidades e diligências, nomeadamente dos deveres de informação, art. 106.º n.º 2 CT.

Importa não esquecer que o contrato de trabalho é de natureza sinalagmática e sem ambas as partes cumprirem as obrigações a que estão adstritas, a subsistência do vínculo laboral pode ser posta em causa. Para este cumprimento, torna-se indispensável que ambas as partes possuam informação relativa a aspetos relevantes necessária para tal.

Recuperando a noção de boa-fé supramencionada, seria exigível a um bom pai de família que, sabendo que, previsivelmente, não viria a conseguir desempenhar as suas funções durante grande parte do seu horário de trabalho, viesse a informar previamente o empregador desta condição. Não o fazendo, poderia incorrer no incumprimento de deveres do trabalhador, nos termos do art.º 128.º CT, nomeadamente relativamente à diminuição significativa de produtividade, de modo a justificar um despedimento por causa imputável ao trabalhador, art. 351.º n.º 2, al. m) CT.

Levanta-se a dúvida se a violação dos deveres de informação é causa justificativa suficiente e, ao mesmo tempo, a opção menos lesiva para o trabalhador, a fim de evitar que o despedimento seja considerado ilícito. Ademais, a própria lei, no art. 197.º n.º2, al. b) CT, inclui a interrupção para satisfação de necessidades fisiológicas no conceito de tempo de trabalho, com todas as consequências que daí decorrem.

Este é mais um dos casos reflexivos da ambiguidade do conceito “justa causa”, que se tem demonstrado suscetível das mais variadas interpretações, incluindo a nível jurisprudencial.

Filipa Grilo e Raquel Guerreiro @DCM | Littler