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Relação hierárquica entre AR e Governo?

No passado dia 11 de outubro de 2022, decidiu o Tribunal Constitucional pela declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do disposto no artigo 111.º, n.º 1 e na alínea a) do n.º 1 do artigo 198.º, ambos da Constituição da República, de algumas disposições:

a) N.º 6 do artigo 2.º da Lei n.º 46/2021, de 13 de julho que determina a obrigatoriedade de “abertura de um processo negocial com as estruturas sindicais para aprovação de um regime específico de seleção e recrutamento de docentes do ensino artístico especializado para o exercício de funções nas áreas das artes visuais e dos audiovisuais.” b) Artigos 1.º, 2.º e 3.º da Lei n.º 47/2021, de 23 de julho, que vinculam o Governo a iniciar de um processo negocial com as estruturas sindicais para a revisão do regime de recrutamento e mobilidade do pessoal docente dos ensinos básico e secundário, orientado sempre pelos critérios de valorização da carreira referidos na presente Lei.

Tendo isto em conta, requereu o Primeiro-ministro, que estas normas fossem declaradas inconstitucionais por violarem o princípio da separação e interdependência de poderes e o núcleo de reserva de administração destinadas ao Governo. Contudo, ainda que também tivesse sido requerida a declaração de inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 2.º da Lei 46/2021, o Tribunal Constitucional não considerou que esta última padecia de inconstitucionalidade por considerar que “(…) ela não consubstancia uma invasão de competências constitucionalmente reservadas ao Governo, por a determinação da abertura do concurso não ser, à luz da CRP, uma matéria necessariamente administrativa.”

Como argumentação, baseou-se o Primeiro-ministro na ideia de que “(…) o poder legislativo, apesar de conformar o exercício da atividade administrativa e de fixar o grau de liberdade decisória das estruturas administrativas terá sempre de respeitar um espaço mínimo de intervenção autónoma da Administração Pública: a função administrativa não é uma dádiva da lei, nem o seu exercício um ato de graça do legislador, antes deparamo-nos com uma função que encontra na Constituição o seu título legitimador, o alicerce de um espaço reservado de decisão e uma autoridade soberana paralela aos demais poderes do Estado.”

Dando, em parte, razão ao requerido pelo Governo, o Tribunal Constitucional começa por cita o Prof. Dr. Reis Novais ao esclarecer que, embora tenha este limite de ser estabelecido tendo em conta o caso concreto, há violação daquele núcleo essencial quando, por força de determinação parlamentar, o Governo é pontualmente degradado ao nível de um órgão subordinado que recebe ordens ou instruções vinculativas da Assembleia da República – de forma não consentânea com o seu estatuto constitucional de órgão de soberania, de órgão encarregado da condução da vida política ou de órgão supremo da Administração Pública – ou quando vê frustrada, por força das mesmas imposições, a possibilidade de determinar autorresponsavelmente, na medida que lhe

esteja constitucionalmente atribuída, o sentido e o conteúdo do exercício das suas competências.

Após referências doutrinais, o douto Tribunal apoia-se na jurisprudência do acórdão n.º 214/2011, seguindo a mesma linha de argumentação por considerar que as normas afrontavam não só o princípio de separação de poderes como, por outro lado, procediam a uma substituição funcional do Executivo: [d]entro dos limites da Constituição e da lei, o Governo é autónomo no exercício da função governativa e da função administrativa», pelo que «nas zonas de confluência entre atos de condução política e atos de administração a cargo do Governo a dimensão positiva do princípio da separação e interdependência de órgãos de soberania impõe um limite funcional ao uso da competência legislativa universal da Assembleia da República [artigo 161.º, alínea c), da CRP], de modo que esse poder de chamar a si do Parlamento não transmude a forma legislativa num meio enviesado de exercício de competências de fiscalização com esvaziamento, pelo controlo democrático-parlamentar e pela regra da maioria, do núcleo essencial da posição constitucional do Governo enquanto órgão superior da administração pública (artigo 182.º da CRP), encarregado de dirigir os serviços da administração direta do Estado [artigo 199.º, alínea d) da CRP].

Em termos de conclusão, observamos a jurisprudência do Tribunal Constitucional não só a impedir uma concorrência legislativa “desleal” como a delimitar, e bem, o domínio de atuação do Governo não permitindo o esvaziamento do mesmo por intrusão parlamentar.

Maria Beatriz Silva @ DCM | Littler

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