No passado dia 14 de outubro, face à crescente evolução da pandemia da doença COVID-19, foi declarada situação de calamidade em Portugal na Resolução do Conselho de Ministros n.º 88-A/2020. Com esta declaração, reduz-se o número de concentrações de pessoas de 10 para 5 pessoas (art.13.º), recomenda-se o uso de máscara na via pública, bem como a utilização da aplicação Stay away Covid e proíbem-se todas as atividades de cariz festivo em contexto académico (art.27.º). E no contexto laboral, o que mudou?
a) Uma vez mais, o teletrabalho assume destaque nos diplomas legislativos em tempos de pandemia de COVID-19. Mantém-se a possibilidade de adoção do regime de teletrabalho, nos termos gerais, sendo que o teletrabalho passa a ser obrigatório, sempre que as funções o permitam:
- quando requerido pelo trabalhador nas situações de trabalhadores imunodeprimidos e doentes crónicos, bem como nos casos de trabalhadores que apresentem uma incapacidade igual ou superior a 60%; (art.4.º, al. a) e b)) e;
- quando os espaços físicos e organização do trabalho não permitam o cumprimento de orientações da DGS e da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) (art.4.º n.º 3).
b) Não é permitida a realização de celebrações e de outros eventos que impliquem uma aglomeração em número superior a 5 pessoas (art. 13.º), o que, no contexto laboral, nos vai fazer repensar, a médio e longo prazo, os eventos e estratégias de team building. (sobre este tema, Team building e acidentes: risco do empregador?).
c) Em termos de organização de trabalho prevê-se a possibilidade de adoção de escalas de rotatividade de trabalhadores entre o regime de teletrabalho e o trabalho prestado presencialmente no local de trabalho, as quais poderão ser diárias ou semanais; e, ainda, a definição de horários diferenciados de entrada e saída ou de horários diferenciados de pausas e de refeições (art. 4.º n.º 4).
Mas que mais se espera do Governo em matéria de organização do trabalho? Após a declaração da situação de calamidade foi apresentada a Proposta de Lei n.º 62/XIV, configurando a possibilidade de se tornar obrigatória a instalação e utilização da aplicação Stay away Covid em determinados contextos, e em especial no contexto laboral ou equiparado (art. 4.º da Proposta), conferindo-se às forças policiais competência própria para fiscalizar o cumprimento desta obrigação(art. 5.º da Proposta).
Será tal imposição admissível, mesmo no cenário pandémico, verdadeiramente excecional, em que vivemos atualmente? De um lado, favorável à imposição, depõe a defesa da segurança e saúde pública e a possibilidade de limitação de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos neste contexto pandémico; de outro lado, desfavorável, levantam-se diversas dúvidas sobre a conformidade à Constituição, que se baseiam na violação da privacidade e da liberdade dos cidadãos e, ainda, na violação do princípio da igualdade (art. 13.º CRP), considerando que esta medida não se poderia, na prática, aplicar aos cidadãos que não têm telemóvel ou pelo smartphone compatível com a aplicação. Com efeito, será lícito ao Estado impor e às autoridades policiais controlar e monitorizar os cidadãos tendo em vista o controlo epidemiológico da COVID-19, abdicando-se do consentimento dos mesmos? Não será esta medida uma medida própria de um Estado polícia ou autocrático?
Note-se que a Comissão Nacional de Proteção de Dados, na Deliberação 2020/277, aprovada a 29 de junho de 2020, pronunciou-se sobre as condições de admissibilidade da aplicação STAYAWAY COVID, tendo considerado que, atendendo ao seu elevado potencial lesivo dos direitos fundamentais dos cidadãos e de intromissão na vida privada dos cidadãos, deveria assentar numa utilização voluntária, que deveria abranger todo o ciclo de utilização. Também neste sentido e postulando o caráter voluntário foi a Avaliação de Impacto sobre a Proteção de Dados (AIPD) realizada pelo INESC TEC (Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência) e ISPUP (Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto) e a CNPD, a Comissão Europeia na Recomendação 2020/518 (cfr. Aplicações móveis e Covid-19: em que condições e quais os limites?).
Admitindo ou não a conformidade à Constituição da proposta de lei, prevê-se que, esta obrigatoriedade de instalação e utilização da aplicação abranja, em especial, os trabalhadores em funções públicas, funcionários e agentes da Administração Pública, incluindo o setor empresarial do Estado, regional e local, profissionais das Forças Armadas e de forças de segurança.
Atendendo a estes argumentos e às múltiplas questões e dificuldades suscitadas por esta proposta legislativa, o Governo optou, cautelosamente, por adiar a discussão parlamentar da Proposta de Lei n.º 62/XIV sobre a aplicação Stay away Covid.
No entanto, e apesar do adiamento da discussão, e aqui chegados, coloca-se a questão: para o futuro, o que se espera? A manutenção da preferência pelo regime de teletrabalho parece certa, mas uma repristinação da sua imperatividade será mesmo uma possibilidade real para o País, no plano económico? E quanto à organização do trabalho, será esta proposta uma realidade para a qual nos devemos preparar? O futuro é incerto e, uma vez mais, a matéria laboral é uma das mais afetadas com estas alterações legislativas.
Luísa S. Pereira | Inês Cruz Delgado | DCM LAWYERS