Uma companhia aérea “low cost” celebrou com uma tripulante de cabine (vulgo hospedeira ou comissário de bordo), de nacionalidade portuguesa, um contrato de trabalho em que se fixava uma remuneração mensal paga doze vezes no ano, sendo expressamente estipulado que a lei aplicável seria a lei irlandesa. Esta legislação não impõe o pagamento de subsídios de férias ou de Natal.
Embora tivesse sido inicialmente colocada na base de Pisa (Itália) da companhia, a referida tripulante permanecia, à data em que o litígio foi desencadeado, afeta à base de Faro.
Por essa tripulante, foi a companhia acionada perante os tribunais portugueses, no sentido – entre outras coisas – de ser obrigada a pagar subsídios de férias e de Natal correspondentes aos vários anos de vigência do contrato.
Simplificando, a questão consistia basicamente em saber se o litígio devia ser resolvido por aplicação da lei irlandesa (com rejeição do pedido de pagamento dos aludidos subsídios) ou pela lei portuguesa (caso em que tal pretensão deveria ser acolhida).
Existe, como é sabido, disciplina europeia sobre o ponto, com especial contemplação das situações de contrato de trabalho. Trata-se do art. 8º do Regulamento (UE) nº 593/2008 de 17 de Junho de 2008, conhecido como “Regulamento Roma I”. Aí se estabelece o seguinte (nº 1):
“O contrato individual de trabalho é regulado pela lei escolhida pelas partes nos termos do artigo 3º. Esta escolha da lei não pode, porém, ter como consequência privar o trabalhador da proteção que lhe proporcionam as disposições não derrogáveis por acordo, ao abrigo da lei que, na falta de escolha, seria aplicável nos termos dos nºs 2, 3 e 4 do presente artigo.”
E, quanto à lei aplicável na falta de escolha pelas partes, dispõe o nº 2 do mesmo artigo:
“Se a lei aplicável ao contrato individual de trabalho não tiver sido escolhida pelas partes, o contrato é regulado pela lei do país em que o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho em execução do contrato ou, na sua falta, a partir do qual o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho em execução do contrato. (…)”.
Em suma: a lei escolhida foi a irlandesa e lei “alternativa” – se fosse o caso – seria a portuguesa.
A hábil argumentação da companhia assentou na ideia de que o art. 8º, nº 1, impunha uma comparação entre a lei escolhida pelas partes e a lei “alternativa”, quanto ao nível de proteção assegurado por cada uma delas – comparação que deveria ser global e não ponto por ponto, em conformidade com a doutrina da conglobação. Se tal perspetiva fosse adotada, chegar-se-ia à conclusão de que a lei irlandesa, embora prevendo apenas doze prestações remuneratórias anuais, conduziria a um resultado mais vantajoso, dado o alto nível do salário mínimo estabelecido nesse país.
O caso percorreu as instâncias e chegou ao STJ. No acórdão produzido (STJ 07/07/2023, Pº 158/20.2T8MTS.P1.S1, relator Ramalho Pinto), a perspetiva apontada pela Ré foi quase sumariamente posta de lado.
Com efeito, a decisão afastou a necessidade da “comparação” preconizada pela companhia, e assentou os seus alicerces na natureza das normas em causa: “Se a base de afetação do trabalhador se situa em território português, se o acordo das partes quanto à lei aplicável ao contrato de trabalho afastou a lei portuguesa, que de outro modo seria aplicável, (…) tal não pode lograr o resultado de afastar as normas inderrogáveis da lei portuguesa, mormente as que respeitam à própria existência de um subsídio de férias e de um subsídio de Natal”.
Na verdade, o art. 8º, nº 1, não preconiza diretamente nenhuma comparação entre regimes nacionais, salvaguardando apenas, de modo explícito, certas normas inderrogáveis – como as que, na lei portuguesa, consagram os direitos aos subsídios de férias e de Natal.
Mas, sendo indubitável o carácter remuneratório destas prestações, pode questionar-se se a consagração legal dos respetivos direitos impede, por exemplo, a fixação da retribuição contratualmente devida em termos anuais, e se, no caso de ela existir, o mero facto de se estipular o divisor 14 permite considerar cumpridas as mencionadas disposições inderrogáveis.
António Monteiro Fernandes @ Of Counsel, DCM | Littler