Para lá do contexto atual, o tempo de trabalho é, e certamente sempre será, um tema de grande controvérsia (o que não deixa de ser curioso atendendo à tentativa de uniformização da matéria pela atual Diretiva 2003/88). Note-se que a Diretiva 2003/88, relativa ao tempo de trabalho, adota um sistema dicotómico: o tempo ou é de trabalho ou é de descanso. Assim, assumindo a inexistência de uma categoria intermédia, têm sido 3 (três), os critérios a que jurisprudência do TJUE tem recorrido, de forma cumulativa, para a consideração de tempo de trabalho:
1. Obrigação de o trabalhador estar fisicamente no local determinado pelo empregador (incluindo quando esse local não é o lugar onde exerce habitualmente a sua atividade profissional);
2. A disposição do trabalhador para fornecer de imediato as prestações adequadas quando exista essa premência;
3. A necessidade de o trabalhador estar no exercício das suas funções.
Pois bem, é deste modo, tomando por base este método em cadeia, que nos debruçamos sobre o recente Acordão do TJUE de 9 de março de 2021.
Factualmente, estava em causa um trabalhador especializado em centros de transmissão de rádio e de televisão na Eslovénia que, atendendo à natureza do trabalho que desempenhava e à distância que necessitava de percorrer até ao seu domicílio, via-se confrontado com a necessidade de permanecer nas proximidades dos centros de transmissão.
Repare-se que um destes centros era de tal modo afastado do domicílio do trabalhador que lhe era impossível deslocar‑se para lá diariamente, o que espoletou a necessidade de construção, por parte da entidade empregadora, nos edifícios dos dois centros de transmissão, um local onde o trabalhador pudesse ficar, local este, onde após o cumprimento das suas obrigações profissionais, podia descansar ou realizar atividades de tempo livre nas proximidades. No entanto, o trabalhador devia permanecer contactável por telefone e, se necessário, chegar ao local de trabalho no prazo de 1 hora.
Ora, existiam dois horários que podiam ser cumpridos: um das 6 horas às 18 horas, e outro do meio‑dia à meia‑noite. O trabalhador cumpriu maioritariamente o segundo horário (das 12 h), que, sendo considerado “trabalho normal”, exigia a sua presença física.
Deste modo, a questão principal que opunha empregador e trabalhador era a de saber se o tempo de serviço de prevenção em regime de prevenção de disponibilidade contínua, devia ou não ser considerado tempo de trabalho. Contrariamente ao empregador, entendia o trabalhador que residia no local onde prestava o seu trabalho estando por isso, na prática, presente no seu local de trabalho 24 horas por dia e que tendo em conta a natureza do seu trabalho e a necessária permanência nos centros de transmissão, a disposição do seu tempo encontrava-se limitada, já que, mesmo em período de prevenção em regime de disponibilidade contínua, este devia responder às chamadas, e, se necessário, chegar ao seu local de trabalho no prazo de 1 hora.
Aqui chegados, repare-se que no âmbito deste processo, o termo prevenção abrange, genericamente, todos os períodos em que o trabalhador está à disposição da sua entidade patronal a fim de poder assegurar uma prestação de trabalho a pedido desta última, ao passo que a expressão «prevenção em regime de disponibilidade contínua» se refere aos períodos durante os quais o trabalhador não está obrigado a permanecer no seu local de trabalho.
Para o efeito, discutiu-se, em sede de reenvio prejudicial, se:
1. O artigo 2.° da Diretiva 2003/88 ser interpretado no sentido de que, se considera como horário de trabalho [o período de prevenção em regime de] disponibilidade contínua, durante [o] qual o trabalhador que exerce a sua atividade laboral numa estação de transmissão de rádio e televisão deve, no período em que não está em serviço (quando a sua presença física no local de trabalho não é necessária), estar contactável telefonicamente e, se necessário, chegar ao local de trabalho no prazo de 1 hora?
2. O facto de o trabalhador residir num alojamento situado no lugar onde exerce a sua atividade laboral (estação de transmissão de televisão), por as características geográficas do local tornarem impossível (ou mais difícil) um regresso diário [ao seu domicílio], influencia a definição [do período de prevenção em regime de] disponibilidade contínua?
3. A resposta às duas questões anteriores será diferente se se tratar de um lugar em que as possibilidades de exercer atividades de lazer no tempo livre são limitadas devido às características geográficas desse lugar, ou se o trabalhador encontrar maiores limitações na gestão do seu tempo livre e na satisfação dos seus próprios interesses (do que se residisse no seu próprio domicílio)?
Entendeu o TJUE, enquanto instância concretizadora de legislação comum, que:
1. O artigo 2.°da Diretiva deve ser interpretado no sentido de que um período de prevenção em regime de disponibilidade contínua, durante o qual um trabalhador apenas deve estar contactável por telefone e poder chegar ao seu local de trabalho, se necessário, no prazo de uma hora, podendo, ao mesmo tempo, permanecer num alojamento de serviço colocado à sua disposição pela sua entidade patronal nesse local de trabalho, sem estar obrigado a aí permanecer. Saber, pois se constitui, na sua totalidade, tempo de trabalho se decorrer de uma apreciação global de todas as circunstâncias do caso em apreço, que as limitações impostas a esse trabalhador durante o referido período são de uma natureza tal que afetem objetiva e muito significativamente a capacidade do trabalhador de gerir livremente, durante o mesmo período, o tempo durante o qual os seus serviços profissionais não são solicitados e dedicar esse tempo aos seus próprios interesses.
2. Para tal, entendeu o Tribunal apelando, ao contrario do entendimento prosseguido pelo Acórdão Federación de Servicios Privados del sindicato Comisiones obreras, que a distância significativa que separa o domicílio livremente escolhido pelo trabalhador do lugar a que deve poder chegar num determinado prazo durante o seu período de prevenção não é, enquanto tal, um critério pertinente para qualificar a totalidade desse período de «tempo de trabalho» na aceção do artigo 2.°, ponto 1, da Diretiva 2003/88, pelo menos quando esse lugar é o seu local de trabalho habitual.
3. Se o local de trabalho engloba ou se confunde com o domicílio do trabalhador, a simples circunstância de, durante um dado período de prevenção, este último ser obrigado a permanecer no seu local de trabalho para poder, se necessário, estar disponível para a sua entidade patronal não basta para qualificar esse período de «tempo de trabalho» na aceção da Diretiva 2003/88. Com efeito, nesse caso, a interdição de o trabalhador deixar o seu local de trabalho não implica necessariamente que tenha de permanecer afastado do seu ambiente familiar e social.
Uma vez mais, à semelhança do Acordão Matzak, parece que o sentido da decisão assenta na restrição espacial da liberdade do trabalhador, elemento que literalmente não consta do conceito de trabalho resultante da Diretiva e da estreita convocação dos critérios inicialmente mencionados.
Todavia, este Acórdão traz à tona, ainda que lateralmente, uma problemática atual: o tratamento do tema do tempo de trabalho quando exista coincidência entre local de trabalho e domicílio. Como equilibrar estes interesses? Repare-se que a facilidade de acesso a um local que é de trabalho mas também de descanso faz diluir a definição de espaços, permitindo, de algum modo, a possibilidade de invasão da esfera privada e confusão dos tempos de trabalho, ressuscitando um tema por nós já tratado em O direito à desconexão: um direito em Portugal?
Por agora, resta-nos aguardar pelos resquícios da factualidade vigente, pois só assim será possível enquadrar a resposta dos tribunais a um problema antigo, é certo, mas que terá necessariamente de reaparecer, ainda que sob um novo prisma.
Inês Cruz Delgado| DCM Lawyers