Recentemente, Christopher Nolan presenteou-nos com um filme sobre a distorção da realidade em função do tempo: uma história contada onde o “Protagonista” se defronta com uma realidade invertida – Tenet (2020). A dada altura da história, é possível visualizar momentos de convergência, entre a realidade que decorre normalmente, nas relações de causa-efeito, com a realidade invertida.
A temática do contrato de trabalho a termo (e a sua conversão em contrato de trabalho indeterminado) na jurisprudência portuguesa tem, nos últimos anos, seguido um pouco desta ordem invertida. Vejamos como.
Por norma, assistimos ou pensamos na conversão dos contratos de trabalho a termo em tempo indeterminado, por diversos motivos (v.g., falta de forma escrita do contrato de trabalho a termo e devidas especificações, a ausência, insuficiência ou falsidade do motivo justificativo que serve de base ao termo bem como a sua não estipulação contratual, a existência de contratos de trabalho a termo sucessivos, além dos limites temporais previstos, ou ainda quando existe um fim de iludir as disposições que regulam o contrato de trabalho sem termo) [vide os arts. 147.º a 149.º do CT].
As causas de conversão do contrato a termo em contrato de trabalho indeterminado apontam no sentido da segurança jurídica no emprego (art. 53.º da CRP). A Diretiva 1999/70/CE do Conselho de 28 de Junho de 1999, respeitante ao acordo-quadro CES, UNICE e CEEP relativo a contratos de trabalho a termo, reforça esta necessidade, para situações jurídico laborais tipicamente qualificadas como sendo de precariedade, especialmente férteis nos temas de discriminação e de eventuais abusos decorrentes da utilização sucessiva de contratos de trabalho ou relações laborais a termo.
O contrato de trabalho a termo é, assim, um contrato de trabalho especial, regulado no Código do Trabalho (arts. 139.º e ss.) que, pela suas propriedades contratuais e consequências para o trabalhador, apresenta-se por forma excecional ao regime regra.
Então e se, pelo contrário, o contrato de trabalho a tempo indeterminado fosse convertido em contrato de trabalho a termo? E se, mesmo não sendo convertido, as partes pretendessem cessar o contrato de trabalho a tempo indeterminado para que o trabalhador ficasse a laborar a termo daquele momento em diante? Retratando assim uma realidade invertida daquela com a qual estamos mais habituados. A jurisprudência já teve oportunidade de se pronunciar com argumentos ponderosos: (i) o Ac. do TRP de 08.04.2013 (Paula Maria Roberto), proc. 1277/10.9TTGMR.P1, onde se aponta: “[p]ode ser celebrado contrato de trabalho a termo certo para início de laboração de empresa ou de estabelecimento pertencente a empresa com menos de 750 trabalhadores (n.º 4, a), do citado artigo 140.º), motivo que fica devidamente concretizado com tal referência (…) No Código do Trabalho não existe uma proibição legal de celebração de um contrato a termo por parte do trabalhador já contratado por tempo indeterminado, sendo que, as especificidades do direito laboral não afastam o princípio da liberdade contratual consignado no artigo 405.º, do C.C. (…) A celebração de um segundo contrato em plena vigência do primeiro, tem a virtualidade de fazer cessar o primeiro, desde logo, <<por ser incompatível a subsistência simultânea dos dois contratos>>, trata-se da conversão (por acordo) de um contrato sem termo num contrato a termo”; bem como (ii) o Ac. do TRP de 09.07.2014 (João Nunes), proc. 180/10.7TTVRL.P1 firmando que: “[n]o âmbito do CT/2009 é admissível a celebração de um contrato de trabalho a termo na vigência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado, uma vez que não só a lei do trabalho não o impede, como o princípio da liberdade contratual permite às partes fixar livremente, dentro dos limites da lei, o conteúdo dos contratos, o que significa que poderão não só revogar um contrato como proceder à sua conversão” (negrito nosso); e, ainda, (iii) o Ac. do STJ de 09.09.2015 (Pinto Hespanhol), proc. 180/10.7TTVRL.P.S1 que, por sua vez, refere: “[f]ace à repristinação dos efeitos jurídicos do contrato firmado em 19 de outubro de 2009 e à demonstrada celebração, em 30 de setembro de 2010, de um contrato de trabalho a termo resolutivo certo, concorreriam, no mesmo período temporal, dois contratos de trabalho, um sem termo e outro a termo, pelo que, como não se compatibilizam os seus regimes, o que afasta a admissibilidade da coexistência de ambos, o contrato de trabalho mais recente deve passar a regular os direitos e as obrigações estabelecidos entre as partes”.
Adaptando à peça cinematográfica, deve o interprete-aplicador questionar, porém, se a realidade invertida não seguirá as mesmas regras que a normalidade num momento de convergência: (i) estão verificadas as mesmas preocupações legislativas que presidiram à implementação de regras rigorosas na contratação a termo?; (ii) não existe, materialmente, uma fraude às regras do termo? (iii) a interpretação de normas laborais permite esta passagem a termo, na ausência de norma expressa? Será possível extrair uma consequência do art. 147.º/1, al. a) do CT?; (iv) a natureza especial do contrato e caráter excecional do regime permite essa margem de liberdade contratual? (v) atendendo às disposições constitucionais e do Direito derivado da União Europeia, o legislador não prefere um primeiro momento de estabilidade contratual em detrimento de uma situação fragilizada ou precária?; (vi) caso este mecanismo a termo seja admissível, como se opera a contagem da antiguidade? Desaproveita-se o tempo em cenários indeterminados? Não será contraditório apontar uma maior antiguidade com um termo iniciado posteriormente, aquando da exata correspondência das partes no vínculo de trabalho? (vii) o imperativo constitucional de segurança (quer na execução, quer na cessação do vínculo) não impede, também, estes fenómenos invertidos? Não será esta situação manifestamente diferente das causas objetivas de cessação do contrato de trabalho (justa causa objetiva)? Até onde será legítimo ir atendendo ao princípio da prevalência dos interesses de gestão? Tenet?
Trata-se de um tema curioso e de difícil resposta. Estaremos atentos a estes fenómenos e futuros desenvolvimentos, quer esta realidade invertida tenha ou não um momento de correspondência com a “normalidade”.
Tiago Sequeira Mousinho | DCM Lawyers