Desde 2018 que os periódicos nacionais destacam o tema do denunciante, ou do whistleblower, com a Proposta de Diretiva de Whistleblowing de 2018 e, sobretudo, com a Diretiva (UE) 2019/1937 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2019, relativa à proteção das pessoas que denunciam violações do Direito da União. Esta última deverá ser transposta até ao próximo dia 17 de dezembro de 2021. Dado o atual contexto politicamente conturbado, não cremos que esta meta venha a ser concluída até ao final do presente ano.
Com respeito às matérias abrangidas, a realidade portuguesa parece concentrar o tema – por forma injusta, diríamos – no âmbito do branqueamento de capitais, corrupção e financiamento de terrorismo (são inúmeras as referências que podemos encontrar no motor de busca a propósito da implementação dos pacotes e estratégia anticorrupção, por parte do Governo português).
Relembre-se que (i) o combate e repressão do branqueamento de capitais e o financiamento de terrorismo possui assento legal próprio bem como Diretivas já transpostas no ordenamento português para o efeito; (ii) a própria Diretiva Whistleblowing aponta uma série de ilícitos além dos apontados, tais como os jusconcorrenciais, fiscais, ambientais, da privacidade e da proteção de dados, saúde pública, defesa do consumidor (…). Evidenciando, este modo, o caráter multidisciplinar do tema.
O Direito do trabalho não é imune ou assintomático: (i) dado que grande parte dos denunciantes estão integrados nas estruturas (públicas e privadas) e, enquanto membros internos, beneficiam do efeito strike from the inside; (ii) devido ao marco da subordinação jurídica, informado por deveres de lealdade e o natural condicionamento em denunciar ou reportar o empregador (receio das eventuais represálias, comportamentos discriminatórios ou persecutórios) (iii) num outro prisma, um sistema de whistleblowing poderá ser benéfico ou um mecanismo de prevenção e combate ao assédio em contexto laboral, que não deverá ser minorado (por forma exemplificada, v., alguns dados já noticiados).
O Ac. do TEDH de 11.05.2021, 3.ª Sec., Halet c. Luxemburgo não obteve uma conclusão pacífica (5 para 2 votos). Natural que assim o seja, quando em causa estão valores fundamentais, tais como a liberdade de expressão (art. 10.º da CEDH) e a promoção ou a defesa do interesse público diante da liberdade de iniciativa económica ou gestão, propriedade privada e política de informação confidencial e confiança das empresas.
Quanto aos factos, refira-se que um trabalhador de uma reputada empresa – cuja especialidade é a prestação de serviços em auditorias, aconselhamento fiscal e gestão – divulgou amplamente informações internas da empregadora (concertadas com clientes e autoridades), em grande quantidade referentes ao hiato temporal de 2002-2012, aos periódicos, outlets e jornais. O famoso caso Luxleaks chegou à atenção de muitas pessoas, amplamente divulgado nas redes e comunicação social. Prejudicando, deste modo, o status profissional da empresa, a imagem diante dos parceiros de negócio e clientes.
O trabalhador foi condenado nas instâncias nacionais do Estado de Luxemburgo que apontaram sobretudo a natureza jurídico-criminal dos factos descritos. O trabalhador, por sua vez, invocou o seu direito fundamental à liberdade de expressão (art. 1o.º da CEDH) e o seu estatuto de whistleblower (estatuto de proteção do denunciante).
Segundo o Direito nacional luxemburguês, a prática de whistleblowing funcionaria enquanto elemento saneador ou corretor da ilegalidade apontada. Nesta lógica, é pressuposto que o trabalhador atue na prossecução do interesse público, conforme os ditames da boa fé e por forma proporcional.
O Tribunal procurou traçar paralelos com experiências passadas, volvidos 10 anos do caso Heinisch c. Alemanha (2011) [v., o nosso comentário sobre a sua pertinência nas relações laborais], também a propósito de uma relação de trabalho subordinado, embora decidido por unanimidade. O Tribunal procurou estabelecer a regra dos 6 critérios do caso Guja c. Moldova (2008); assim: (i) a divulgação deve ser realizada no interesse público; (ii) a informação divulgada deve ser verdadeira; (iii) a informação providenciada ao público ser realizada através da comunicação ou redes sociais por estes serem os únicos meios realísticos e aptos a chegar a seu destinatário (público), deixando o alerta; (iv) a atuação conforme os ditames da boa fé; (v) o justo balanço do interesse público em receber a informação e o dano causado ao empregador com aquela divulgação; (vi) a proporcionalidade da penalização. Os dois últimos, todavia, não se encontravam preenchidos na perspetiva do decisor.
Deste modo, O Tribunal validou a ponderação efetuada pelos Tribunais nacionais: não havendo lugar a violação do art. 10.º da CEDH. O segredo é a alma do negócio e, por vezes, sem segredo não existe negócio. Razão pela qual o segredo negocial tenha base legal estabelecida (arts. 313.º e ss. do CPI) podendo, no limite, adquirir dignidade jurídico-penal (art. 195.º do CP). O Código do Trabalho não é imune a esta realidade [v., art. 128, n.º 1, al. f)], consagrando deveres específicos a este respeito. Como teriam sido aplicadas as regras portuguesas?
Estaremos atentos à evolução deste tema, não só pela transposição da Diretiva Whistleblowing ao nível da disciplina substantiva, mas também diante das regras processuais laborais, já consagradas para levantamento da confidencialidade, mormente dos arts. 186.º-A e ss. do CPT, a propósito da ação especial de impugnação da confidencialidade de informações ou da recusa da sua prestação ou da realização de consultas.
Tiago Sequeira Mousinho | DCM | Littler