No passado dia 26 de novembro, curiosamente, um dia depois do Dia Internacional da Eliminação da Violência contra as Mulheres, foi aprovado o Decreto-Lei n.º 101/2020 que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas. Este regime veio criar uma licença de reestruturação familiar e respetivo subsídio, de carácter urgente, aplicável a trabalhador(a) vítima de violência doméstica que, em razão da prática do crime, se veja obrigado(a) a alterar a sua residência. Sendo certo, contudo, que este crime não assola apenas a vida de mulheres e vale sempre a pena reforçar esse facto.
Relativamente à licença de reestruturação familiar note-se que o trabalhador, por conta de outrem ou em exercício de funções públicas, independentemente da modalidade de vínculo de emprego público, vítima de violência doméstica, a quem tenha sido atribuído o respetivo estatuto e que se veja obrigado a sair da sua residência, em razão da prática do crime de violência doméstica, tem direito a uma licença pelo período máximo de 10 dias seguidos. Esta ausência, durante o período de licença, não implica a perda de quaisquer direitos, salvo retribuição (art.43.ºA da Lei 112/2009, de 16 de setembro).
O reconhecimento do direito à atribuição e ao pagamento do subsídio de reestruturação familiar das vítimas de violência doméstica é da Comissão para a igualdade de género (art. 58.º A da Lei 112/2009 de 16 de setembro), sendo que a responsabilidade pelo pagamento deste subsídio compete à Segurança Social, com exceção do pagamento do subsídio de trabalhador abrangido pelo regime de proteção social convergente, em que a responsabilidade compete ao empregador público (por exemplo, a Caixa Geral de Aposentações). A atribuição deste subsídio varia consoante o vínculo em causa, depende da apresentação de requerimento instruído com cópia do documento comprovativo do estatuto de vítima de violência doméstica e não pode ser inferior a 1/30 de 438,81 euros (valor do IAS em 2020).
Assim, o subsídio atribuído a: i) trabalhador por conta de outrem ou em exercício de funções públicas corresponderá, em montante diário, a 1/30 do valor da remuneração base líquida auferida no mês anterior à apresentação de requerimento, durante o período da licença; ii) trabalhador independente, será, em montante diário, de 1/30 do rendimento relevante apurado na última declaração trimestral, com um limite máximo equivalente a 10 dias; iii) membro de órgão estatutário de pessoa coletiva, o montante diário do subsídio corresponderá 1/30 do valor da remuneração base líquida auferida no mês anterior à apresentação de requerimento, com um limite máximo equivalente a 10 dias; iv) profissional não abrangido pelo sistema de proteção social da segurança social ou que não detenha qualquer vínculo laboral ou profissional, o montante diário do subsídio representará 1/30 do IAS, com um limite máximo equivalente a 10 dias.
Com estas medidas, assistimos a uma mudança de paradigma: um reforço da proteção da vítima de violência doméstica, com repercussões no âmbito laboral. A primeira referência aparece com o Código de Trabalho de 2009 prevendo-se a possibilidade de o trabalhador vítima de violência doméstica poder solicitar, unilateralmente, a transferência do local de trabalho, nos termos do art. 195.º do CT, também para as situações de teletrabalho, nos termos do art. 166.º n.º 2 do CT, desde que verificados cumulativamente os seguintes requisitos: (i) que a empresa possua diversos estabelecimentos, permitindo que o trabalhador seja transferido para outro; e (ii) que tenha sido apresentada queixa-crime por violência doméstica. Verificados estes dois requisitos o empregador não pode recusar a transferência, poderá apenas adiá-la, nos termos do art. 195.º n.º 2 do CT. O trabalhador pode, após adiamento da transferência do local de trabalho, solicitar a suspensão do contrato, art. 195.º n.º 3 do CT.
Com este Decreto-Lei, alarga-se o espetro de proteção, abarcando trabalhadores vítimas de violência doméstica em domínios de relevância nuclear como seja a reorganização familiar permitida pela suspensão de deveres como, o dever de assiduidade. Concede-se ainda um apoio aos trabalhadores sob a forma de subsídio, que recairá sobre a Segurança Social ou sobre empregador público, consoante o vínculo.
Sem prejuízo do caminho legislativo iniciado, há ainda muito a fazer, sem esquecer, no entanto, a sensibilidade característica de alguns domínios como é o da violência doméstica. Estes e estas trabalhadores estão, diariamente, numa situação de fragilidade a qual não pode ser ignorada. A reflexão no mundo laboral é imensa. Mais ausências, menor produtividade, mais desemprego, menor progressão na carreira. Urge que o Legislador revisite este tema várias vezes, a fim de assegurar que a violência doméstica não deixa, ainda mais, ninguém para trás.
Ana Amaro | Inês Cruz Delgado | Catarina Venceslau de Oliveira | DCM Lawyers