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Um empregador material à luz do TJUE

By 14 Janeiro, 2021No Comments

A temática da qualificação contratual da relação subordinada é bastante frutífera, em especial  na concretização do conceito de trabalhador subordinado e da própria ideia de subordinação jurídica. A jurisprudência do TJUE muito tem contribuído, desta forma, para o aprofundamento da disciplina de Direito do Trabalho.

Mas não só, com a proliferação da contratação digital, internacional e à distância, muitas dúvidas têm sido colocadas a propósito do empregador; salientam-se aquelas situações em que o empregador contrata à distância, trabalhadores de outro Estado Membro, para colaborarem com outros agentes económicos, à luz de uma Economia Colaborativa, onde as empresas atuam enquanto agentes económicos e partilham determinados esforços na repartição dos seus recursos, sem com isso prejudicar a sã concorrência na União Europeia. Retratando, desta forma, um enlaço entre o Direito Internacional Privado e o Direito do Trabalho.

Esta partilha de esforços e crescente mobilidade de trabalhadores no espaço da União Europeia fez nascer inúmeras dúvidas, com especial saliência na proteção social dos trabalhadores subordinados. Constitui caso exemplo o Ac. do TJUE (Grande Secção) de 16.07.2020 (pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Centrale Raad van Beroep – Países Baixos) – AFMB Ltd e o./Raad van bestuur van de Sociale verzekeringsbank. Sumariamente, a AFMB (sociedade cipriota) celebrou com empresas sediadas nos Países Baixos contratos de gestão de frotas, nos quais esta primeira se comprometia a pagar uma comissão para assegurar a gestão daquelas frotas de veículos pesados explorados por essas empresas. Para tal feitura, a mesma AFMB celebrou vários contratos de trabalho com condutores de veículos pesados de transporte rodoviário internacional – à distância – que permaneceram sempre no âmbito territorial dos Países Baixos. Formalmente, a AFMB ficou contratualmente consagrada como empregadora daqueles trabalhadores holandeses. Mais se poderá dizer que a lei cipriota não só permitia esta celebração como era considerada aplicável para as querelas de Direito do Trabalho. Refira-se, ainda, que estes trabalhadores nunca laboraram em território cipriota e que, por isso, muitas dúvidas eram colocas a propósito da proteção social destes: o sistema de Segurança Social em causa, era o serviço holandês ou o cipriota?

Questionou-se, assim: “[n]o âmbito do litígio no processo principal, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, em primeiro lugar, sobre a questão de saber se se deve considerar que os condutores de veículos pesados de transporte rodoviário no processo principal «fazem parte da equipagem» da AFMB ou das empresas transportadoras, na aceção do artigo 14.o, ponto 2, alínea a), do Regulamento n.o 1408/71, e têm como «empregador» a primeira ou as segundas, na aceção do artigo 13.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento n.o 883/2004. Esse órgão jurisdicional procura, assim, determinar a ou as empresas a quem deve ser reconhecida a qualidade de empregador dos referidos condutores para efeitos da aplicação destas disposições, bem como os critérios a ter em consideração para esse efeito” (negrito nosso).

Em resposta, o Tribunal salientou sumariamente que: (i) seria aplicável o Regulamento 883/2004 aos trabalhadores que se apresentem como condutores de veículos pesados de transporte rodoviário em dois ou mais Estados Membros; (ii) que os trabalhadores exerciam a sua atividade por conta de outrem, sob a autoridade das empresas transportadoras (holandesas); (iii) que o regime em causa está voltado para os conflitos de lei, dissipando as situações em que os trabalhadores subordinados são regalados à ausência de proteção social (por conflitos de lei positivos ou negativos); (iv) devendo-se proceder a uma interpretação material, com primazia da substância sobre a forma, atendendo às regras de uniformidade de segurança social dos trabalhadores; (v) procurando, ainda assim, estabelecer o princípio da conexão mais estreita, sendo o território holandês aquele com maior proximidade para efetuar a proteção social dos trabalhadores.

Salientou-se ainda a necessidade de operar uma interpretação autónoma e uniforme, hábil a possibilitar a unicidade e os objetivos dado o contexto circunstancial e o corpo normativo da União Europeia: (i) garantir a igualdade e não discriminação de trabalhadores (migrantes); (ii) garantir a proteção social dos trabalhadores em situação de destacamento; (iii) separar os documentos contratuais que descrevem o trabalho da situação real dos trabalhadores, em especial quando uma e outra divergem, aplicando uma preferência pela última (maior segurança jurídica); (iv) o empregador material seria quem, na prática, exerce a autoridade efetiva, quem paga o salário e quem em última análise pode despedir.

Os contratos de gestão de frotas, desta forma, figuram-se insuficientes para justificar a posição de empregador – os serviços funcionalmente conexos com a atividade profissional podem, segundo o TJUE, assumir a posição de empregador material consoante os poderes que estes exercem sobre os trabalhadores, ainda que estes não tenham assumido (formalmente) qualquer obrigação contratual com estes.

Em temáticas de deveres diante da Segurança Social compete-nos apontar que o regime contributivo e de proteção social dos trabalhadores subordinados segue um princípio de unicidade – quer da contribuição, quer da localização. Neste seguimento, a intenção do legislador da União Europeia é de garantir: (i) por um lado, que inexistem “vácuos jurídicos” quanto à contribuição e quanto à proteção social dos trabalhadores; (ii) por outro, combater as empresas que procedam a fraudes ao nível contributivo, escolhendo o local onde as obrigações, diante dos sistemas de segurança social, sejam menos onerosas.

Que consequências podem ser retiradas? Em primeiro lugar, a possibilidade de retroagir todo o processo de sistema da segurança social daquele trabalhador que encontra o seu empregador material; em segundo, a possibilidade desta construção valer para todo o tipo de trabalhadores subordinados, em sede de grupos; em terceiro, a necessidade de providenciar maior atenção à integração de trabalhadores destacados e à relação que este mantém com o “empregador originário”, sendo possível um vínculo material passar a formal e vice versa.

Ficaremos atentos a futuras concretizações da figura do empregador em sentido material.

 

Tiago Sequeira Mousinho | DCM Lawyers