Pode uma prática remuneratória adotada, de modo contínuo, ao longo de vários anos, por uma empresa, alegadamente por “erro involuntário”, converter-se em uso laboral vinculante, ou seja, incorporar-se nos contratos individuais de trabalho dos trabalhadores beneficiários?
A questão adensa-se se tivermos em conta a hipótese de essa prática remuneratória redundar em violação de um plano de retribuições variáveis constante do próprio contrato individual de trabalho.
O STJ teve, muito recentemente, oportunidade de se debruçar sobre um caso concreto caracterizado, justamente, por esses traços (STJ 4/05/2023 – Pº 3002/19.0T8MAI.P1.S1, relator Mário Belo Morgado)..
Uma empresa celebrou, em 2001, um contrato de trabalho com um técnico comercial. Desse contrato constava a remissão para um “plano de comissões vigente na empresa”, que o trabalhador aceitou. Nos termos desse plano, ele receberia, anualmente, a comissão de 10% sobre as margens brutas da atividade comercial da empresa, cujo pagamento seria feito do seguinte modo: um valor, previamente fixado, que se adicionaria à retribuição certa de cada mês, na base de 11,5 meses (agosto seria reduzido a metade), com um acerto final calculado com base nos valores reais daquelas margens.
Assim se cumpriu, ao longo dos anos, no que toca às retribuições mensais.
Porém, nesses mesmos anos, a empresa pagava os subsídios de férias e de Natal incorporando neles a média das retribuições variáveis (comissões) pagas nos 12 meses anteriores – valores que não eram considerados no acerto anual do montante das comissões devidas.
A realização de uma auditoria em 2017 evidenciou o desvio que essa prática representava relativamente ao “plano de comissões”, e a empresa decidiu, na sequência, deixar de considerar a referida média no cálculo dos subsídios de férias e de Natal. O assunto dizia respeito a todos os empregados da área comercial, e alguns recorreram a tribunal para obterem a condenação da empresa no pagamento dos valores de que assim tinham ficado privados.
A questão central era, pois, a de saber se um benefício atribuído aos trabalhadores, ao longo de uma década e meia, em consequência de um erro de interpretação, e contra o estipulado nos próprios contratos de trabalho, podia converter-se num uso laboral vinculante e, como tal, incorporar-se nesses contratos.
O acórdão acima referido decidiu a favor dos trabalhadores, considerando que “a formação de um uso juridicamente relevante não é por regra excluída por erro do empregador”, não sendo absoluto o princípio de que “os usos laborais não devem prevalecer sobre disposição contratual expressa em contrário”. Acima dessas considerações, o Supremo baseou-se na boa-fé, na tutela da confiança e, inclusivamente, num “dever de cuidado que sobre o empregador impende, no sentido de não criar prolongadamente esperanças aos trabalhadores quanto à manutenção de uma prestação”. Reconheceu, em suma, existir um uso laboral vinculante, não podendo a empresa “corrigir o erro”, mesmo que só para futuro.
A decisão não é isenta de dúvidas e de dificuldades. São, por outro lado, numerosos os casos concretos do mesmo tipo. É importante acompanhar refletir sobre eles, acompanhando os desenvolvimentos desta orientação jurisprudencial.
António Monteiro Fernandes @ Of Counsel, DCM | Littler