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Um uso laboral com base em erro de interpretação?

By 12 Junho, 2023No Comments

Pode uma prática remuneratória adotada, de modo contínuo, ao longo de vários anos, por uma empresa, alegadamente por “erro involuntário”, converter-se em uso laboral vinculante, ou seja, incorporar-se nos contratos individuais de trabalho dos trabalhadores beneficiários?

A questão adensa-se se tivermos em conta a hipótese de essa prática remuneratória redundar em violação de um plano de retribuições variáveis constante do próprio contrato individual de trabalho.

O STJ teve, muito recentemente, oportunidade de se debruçar sobre um caso concreto caracterizado, justamente, por esses traços (STJ 4/05/2023 – Pº 3002/19.0T8MAI.P1.S1, relator Mário Belo Morgado)..

Uma empresa celebrou, em 2001, um contrato de trabalho com um técnico comercial. Desse contrato constava a remissão para um “plano de comissões vigente na empresa”, que o trabalhador aceitou. Nos termos desse plano, ele receberia, anualmente, a comissão de 10% sobre as margens brutas da atividade comercial da empresa, cujo pagamento seria feito do seguinte modo: um valor, previamente fixado, que se adicionaria à retribuição certa de cada mês, na base de 11,5 meses (agosto seria reduzido a metade), com um acerto final calculado com base nos valores reais daquelas margens.

Assim se cumpriu, ao longo dos anos, no que toca às retribuições mensais.

Porém, nesses mesmos anos, a empresa pagava os subsídios de férias e de Natal incorporando neles a média das retribuições variáveis (comissões) pagas nos 12 meses anteriores – valores que não eram considerados no acerto anual do montante das comissões devidas.

A realização de uma auditoria em 2017 evidenciou o desvio que essa prática representava relativamente ao “plano de comissões”, e a empresa decidiu, na sequência, deixar de considerar a referida média no cálculo dos subsídios de férias e de Natal. O assunto dizia respeito a todos os empregados da área comercial, e alguns recorreram a tribunal para obterem a condenação da empresa no pagamento dos valores de que assim tinham ficado privados.

A questão central era, pois, a de saber se um benefício atribuído aos trabalhadores, ao longo de uma década e meia, em consequência de um erro de interpretação, e contra o estipulado nos próprios contratos de trabalho, podia converter-se num uso laboral vinculante e, como tal, incorporar-se nesses contratos.

O acórdão acima referido decidiu a favor dos trabalhadores, considerando que “a formação de um uso juridicamente relevante não é por regra excluída por erro do empregador”, não sendo absoluto o princípio de que “os usos laborais não devem prevalecer sobre disposição contratual expressa em contrário”. Acima dessas considerações, o Supremo baseou-se na boa-fé, na tutela da confiança e, inclusivamente, num “dever de cuidado que sobre o empregador impende, no sentido de não criar prolongadamente esperanças aos trabalhadores quanto à manutenção de uma prestação”. Reconheceu, em suma, existir um uso laboral vinculante, não podendo a empresa “corrigir o erro”, mesmo que só para futuro.

A decisão não é isenta de dúvidas e de dificuldades. São, por outro lado, numerosos os casos concretos do mesmo tipo. É importante acompanhar refletir sobre eles, acompanhando os desenvolvimentos desta orientação jurisprudencial.

António Monteiro Fernandes @ Of Counsel, DCM | Littler