Foi aprovado, no âmbito da Comissão de Trabalho e Segurança Social da Assembleia da República, o texto do projecto de lei regulador do teletrabalho.
Como se sabe, a oportunidade desta iniciativa legislativa foi e é muito debatida. Segundo a opinião de alguns, o regime constante dos arts. 165º e seguintes do Código do Trabalho (somado aos princípios e regras gerais atinentes ao contrato de trabalho) seria suficiente e adequado para as realidades do teletrabalho, tal como se apresentam em Portugal. Outros entendem que esse regime, concebido há quase duas décadas (para o Código de 2003), deixa a descoberto um grande número de questões suscitadas pela prática dessa modalidade de trabalho. A experiência recente do teletrabalho imposto, no quadro das medidas de combate à pandemia, veio dar alguma razão aos defensores da segunda tese. Por outro lado, existia naquela Comissão perto de uma dezena de projectos de lei sobre o tema ou tópicos com ele relacionados, parecendo inevitável alguma acção específica no quadro parlamentar.
O projecto assim ultimado reúne algumas alterações aos vários artigos do Código do Trabalho respeitantes a essa matéria, e adiciona um certo número de artigos novos, alguns dos quais (poucos) são de aplicação geral e não apenas restritos ao teletrabalho.
É o caso do art. 199º-A, intitulado “Dever de abstenção de contacto”. Trata-se, como é óbvio, do chamado “direito ou desconexão” ou “de desligamento” do trabalhador, em qualquer relação de trabalho – um direito que o (futuro) legislador concretiza ou densifica num dever abstensivo da entidade empregadora. A matéria é das mais delicadas. Os bens jurídicos visados pela norma (direito ao repouso e ao lazer, privacidade) carecem da cooperação do trabalhador para que sejam realmente salvaguardados. A não-desconexão pode ser corolário de uma deficiente organização do trabalho pessoal pelo trabalhador. Por outro lado, a articulação do direito ao desligamento com a prática do trabalho suplementar, ou até – sobretudo – de um banco de horas não está claramente estabelecida.
Regressando ao domínio próprio do teletrabalho, salienta-se também a assimetria das posições do trabalhador e do empregador relativamente à adopção dessa modalidade.
Assim, normalmente (isto é, fora das situações anómalas que motivam a sua imposição pela autoridade pública), o teletrabalho só pode ser instituído por acordo. Essa é a regra. No entanto, a recusa pelo empregador tem que ser motivada, ao passo que a do trabalhador dispensa fundamentação.
Além disso, os casos que o regime ainda vigente prevê de reconhecimento do “direito ao teletrabalho” (trabalhador vítima de violência doméstica, trabalhador com filho de idade até 3 anos) são alargados com a previsão dos trabalhadores com filhos até 8 anos, desde que preenchido um certo número de condições, e das pessoas com o estatuto de “cuidador informal não principal” (definido nos seguintes termos pela lei respectiva: “o cônjuge ou unido de facto, parente ou afim até ao 4.º grau da linha reta ou da linha colateral da pessoa cuidada, que acompanha e cuida desta de forma regular, mas não permanente, podendo auferir ou não remuneração de atividade profissional ou pelos cuidados que presta à pessoa cuidada”).
Em suma: o empregador não pode nunca impor o teletrabalho no seu exclusivo interesse, mas pode ter que o aceitar contra a sua vontade. Em qualquer circunstância, porém, esta última hipótese só tem lugar mediante a verificação de dois requisitos objectivos: que o teletrabalho seja compatível com a actividade desempenhada pelo trabalhador e que o empregador disponha de recursos e meios técnicos para o efeito.
Logo que o projecto se converta em lei, tratar-se-á neste espaço de o apresentar em detalhe, evidenciando as questões aplicativas mais importantes que ele suscita.
António Monteiro Fernandes @ DCM | Littler