As relações laborais têm sofrido as repercussões da pandemia e dos tempos atípicos que vivemos. Nesta senda, tem-se trazido à ordem do dia temas e questões que antes, embora já se colocassem, não se impunham com tanta preponderância.
A preocupação com a conciliação entre os imperativos profissionais e a vida pessoal e familiar tem vindo a tomar especial destaque no plano laboral devido ao paradigma de haver cada vez mais “escravos do trabalho”, originando um novo tipo de esclavagismo entre os trabalhadores, pela invasão constante dos tempos livres e espaço privado pelos imperativos profissionais, em que é o próprio trabalhador que coloca limites de objetivos inatingíveis face ao tempo e disponibilidade que tem para uma harmoniosa conciliação. Desde 2017, a conciliação trabalho-família foi apresentada como Pilar Europeu dos Direitos Sociais, sendo de destacar neste âmbito a recente Diretiva (UE) 2019/1158 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, relativa à conciliação entre a vida profissional e a vida familiar dos progenitores e cuidadores.
Da experiência quotidiana e jurisprudencial (v.g., Ac. TRE 11.07.2019 (Paula do Paço), proc. n.º 3824/18.9T8STB.E1 | Ac. TRL 29.01.2020 (Sérgio Almeida), proc. n.º 3582/19.0T8LRS.L1-4), a temática da conciliação é comumente associada ao horário de trabalho e a formas flexíveis de desempenhar a atividade, por forma a permitir ao trabalhador figurar nestas duas faces de que é protagonista. Algo mais inusitado parece-nos ser o pedido de transferência do local de trabalho (para além de situações de violência doméstica e/ou para prestar trabalho à distância e teletrabalho), 166.º n.º 2 e n.º 3 do CT em conjugação com o art. 195.º do CT, com vista a dar cumprimento à conciliação trabalho-família.
Todavia, a realidade supera sempre a teoria…
Uma trabalhadora de uma cadeia de supermercados, mãe de dois menores, pediu à entidade empregadora a redução do seu tempo de trabalho e a alteração do local de trabalho para um centro de trabalho mais próximo do seu domicílio. A Entidade Empregadora respondeu ao pedido, assentido a redução horária, mas nada dizendo quanto à alteração para outro centro da Empresa. Não se conformando com a ausência de resposta a trabalhadora recorreu aos tribunais, obtendo uma sentença não satisfatória, da qual recorreu. O Tribunal Superior de Justiça da Galiza, numa decisão vanguardista reconheceu-lhe o direito à redução do seu horário de trabalho e a alterar o seu local de trabalho para zona geograficamente mais próxima do seu domicilio para uma efetiva conciliação entre a profissão e o seu agregado familiar.
Classificando a conciliação vida familiar e profissional como um direito fundamental de todos os trabalhadores, o Tribunal condenou ainda a Empresa no pagamento de uma indemnização por danos morais com a violação deste direito.
Aqui chegados propomo-nos refletir com os olhos do ordenamento jurídico português.
O Código do Trabalho Português não contém nenhuma norma que permita a alteração do local de trabalho, por iniciativa do trabalhador para conciliação da vida familiar, não nos debruçando sobre a admissibilidade e alcance em cláusulas de convenções coletivas. No entanto, é legítima a questão de saber se fará sentido, aludir à conciliação não numa ótica fechada e dirigida à flexibilidade horária, mas antes abrir o espectro e abarcar outras variáveis, consagrar uma eventual flexibilização geográfica. Bem sabemos que estas soluções e mecanismos conciliatórios deverão ser sempre contrabalançados com os princípios da proporcionalidade e interesses de gestão da empresa, sem, todavia, olvidar que estamos diante de um direito social fundamental, exigível perante um tribunal.
A respeito da interpretação desta última diretiva, deixa-se margem aos Estados Membros para a adoção de mecanismos que confiram, aos trabalhadores e trabalhadoras, uma tutela acrescida relativamente à que confere a própria diretiva (art.16º, nº 1).
O considerando 34 do preâmbulo da Diretiva (UE) 2019/1158, de 20 de junho, refere que [a] fim de incentivar os trabalhadores que são progenitores e cuidadores a permanecerem no ativo, é importante que possam adaptar os horários de trabalho às suas necessidades e preferências pessoais. Para o efeito, e com ênfase nas necessidades dos trabalhadores, eles deverão ter o direito de solicitar regimes de trabalho flexíveis, para adaptarem os seus ritmos de trabalho, nomeadamente, se possível, pela utilização de regimes de teletrabalho, horários de trabalho flexíveis ou uma redução das horas de trabalho para poderem prestar cuidados.
No art.3º, n.º 1, al. f), ao definir-se o que se entende por regimes de trabalho flexíveis, a aposição da expressão nomeadamente, indica-nos que o leque dos regimes elencados é exemplificativo, possibilitando margem interpretativa para se depreender que outras formas e regimes de trabalho flexíveis poderão ser adotados no sentido de dar cumprimento ao desiderato do legislador comunitário que é, no dizer do próprio corpo normativo, alcançar a igualdade entre homens e mulheres quanto às oportunidades no mercado e no tratamento no trabalho, facilitado a conciliação (art.1º).
O art. 9.º n.º 1 da referida Diretiva estipula que os progenitores têm direito a solicitar regimes de trabalho flexíveis, nunca circunscrevendo o seu alcance meramente ao horário de trabalho.
Expectamos que o legislador nacional, na transposição desta Diretiva, com data-limite a 02.06.2022, reequacione o que entende por formas flexíveis de trabalho, abrindo o campo a outros regimes e mecanismos que poderão ser altamente potenciadores da conciliação entre a esfera profissional e a esfera pessoal e familiar, abrindo o campo da flexibilização também ao nível do espaço onde se presta trabalho.
Ana Amaro | Gonçalo Asper Caro | DCM Lawyers