A jurisprudência do trabalho brasileira é de uma enorme riqueza. A organização judiciária especial que se dedica às questões sociais está capilarizada em todo o imenso território daquele país, tanto na primeira como na segunda instâncias. Um tribunal próprio (o Tribunal Superior do Trabalho, sediado em Brasília) constitui a instância de topo para a generalidade dos litígios, excepto aqueles que ponham em causa questões de constitucionalidade.
Mas a riqueza da jurisprudência brasileira deriva sobretudo da sua originalidade, fruto de uma legislação muito desenvolvida e da infinita diversidade dos temas litigiosos. Na verdade, a justiça do trabalho é relativamente rápida e barata, o que facilita e até estimula o acesso das pessoas à via judicial.
Tomemos como exemplo o caso das gorjetas. Esses valores, pagos pelos clientes de um restaurante ou estabelecimento de outro tipo, como expressão do reconhecimento de um bom serviço, são, entre nós, qualificáveis como doações remuneratórias de terceiros em relação ao contrato de trabalho dos beneficiários. Assim sendo, entende-se que esses valores não têm relevância sob o ponto de vista das regras legais referentes à retribuição do trabalho devida pelo empregador.
No direito brasileiro, as coisas não são simples nem ficam por aí. Percebe-se por quê. Muitas vezes, as gorjetas são pagas de tal modo que transitam, em primeiro lugar, pelas mãos da entidade empregadora. Não raro – e isso é mesmo corrente nalguns países – as contas de refeições nos restaurantes contêm propostas de gorjetas, que são englobadas no total das mesmas contas. Isso é particularmente visível quando as contas são pagas com recurso a cartão de débito ou crédito. Quando assim é, recai sobre o empregador a obrigação de “restituir” esses valores aos empregados, embora não se trate de parcela da retribuição por ele devida…
Uma norma da CLT (Consolidação das Leis fo Trabalho), sem paralelo na nossa legislação, afirma apenas isto: “Compreendem-se na remuneração do empregado, para todos os efeitos legais, além do salário devido pelo empregador, como contraprestação do serviço, as gorjetas que receber” (art. 457º).
Para um jurista português, esta norma suscitaria, antes de qualquer outra, a questão de saber que “efeitos legais” seriam esses, atribuídos a uma prestação não devida pelo empregador. Mas, na jurisprudência brasileira, a norma levanta sobretudo problemas relacionados com a distribuição dos valores das gorjetas pagas por serviços que podem envolver vários trabalhadores e não apenas aquele que contacta o cliente pagador. No direito pátrio, estas questões seriam, provavelmente, decididas por aplicação da lei civil; no Brasil, são tratados numa perspectiva laboral, apesar de serem alheios à fisiologia própria da relação de emprego.
Há aqui matéria para reflexão, também deste lado do Atlântico.
Discuti brevemente o tema com um jovem membro da equipa Littler e desafiei-o a elaborar autonomamente sobre ele. Aqui vai o texto resultante dessa sua “aventura” teórico-prática.
António Monteiro Fernandes
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Remuneração e as suas Implicações na Ordem Jurídica Brasileira
Apesar de ser um gosto lidar com o Direito brasileiro, é este de difícil acesso a quem nunca com ele lidou de forma duradoura. Não obstante, procuro e procurarei dar o meu melhor na exposição que se segue.
Mas antes, deixe-me dizer-lhe que não só estou aberto, como faço questão que, sempre que o entender, me lance estes desafios. Acredito que, desta forma, torno-me todos os dias um melhor jurista, um melhor pensante, um melhor estudante e um melhor cidadão. Por isso, a si, um grande obrigado!
O proémio do art. 457.º da Consolidação das Leis do Trabalho (doravante, CLT) afirma como compreendendo a remuneração “para todos os efeitos legais, além do salário devido e pago diretamente pelo empregador, como contraprestação do serviço, as gorjetas que receber.”
Neste plano, e de acordo com o que falamos, duas questões poder-se-ão colocar:
- A quem cabe o direito à gorjeta? Aos empregados de mesa ou a toda a cadeia de produção do empregador?;
- A expressão “para todos os efeitos legais” implica a inclusão das gorjetas no cálculo da remuneração devida a título de férias, subsídio de férias (ou, como nomeado pela doutrina brasileira, adicional de férias), subsídio de Natal (ou como é conhecido, décimo terceiro salário), trabalho suplementar, entre outros?
Quanto à primeira questão, acrescentamos algumas outras a título de reflexão ou, melhor dizendo, pensamentos em “voz alta”:
- Tendo o empregador uma fábrica de massas, as quais vende nos seus restaurantes, caso se divida a gorjeta por toda a cadeia produtiva, parece-me necessário dividir também com os trabalhadores da fábrica. Mas fará isto sentido? Não será a gorjeta apenas caraterística de algumas categorias profissionais que lidem com o público?
- Por outro lado, na maioria dos restaurantes, o que verdadeiramente importa é a qualidade da refeição. Então fará sentido apenas garantir o direito à gorjeta àqueles que “apenas” servem o alimento?
- Contrapondo, e se o cliente disser especificamente que a gorjeta é pela qualidade do atendimento de x trabalhador, deve o intérprete-aplicador destinar o dinheiro alheio?
Já quanto à segunda questão, embora questões também se possam colocar, tentaremos respondê-las. De facto, a letra da lei não admite que se faça uma interpretação restritiva no sentido de afirmar que as gorjetas a que a lei refere seriam tão-só as que o trabalhador recebesse do empregador. Assim nos parece, visto que, se fosse essa a intenção do legislador, não teria ele especificado que o salário é “pago diretamente pelo empregador”.
Por outro lado, parece-nos, com o devido respeito, impensada a ideia de onerar o empregador ao pagamento da média de gorjetas que o trabalhador tenha recebido em dado período. Não nos podemos esquecer que é o cliente completamente alheio à relação jurídico-laboral. Para além do mais, há o gigantesco risco de se facilitar a fraude à letra da lei, como no caso em que o trabalhador pede dinheiro emprestado a um conhecido, o qual lhe paga a título de gorjeta, isto, apenas para majorar o que lhe será devido a título de férias, adicional de férias, décimo terceiro, etc.
Ainda assim, parece-nos admissível, à primeira vista, limitar o alcance da expressão “para todos os efeitos legais”, visto que o subsídio de Natal é retratado na lei como décimo terceiro salário.
Ora, como bem diferencia Orlando Gomes e Elson Gottschalk, “Conceitua-se (…) como salário, tão só as atribuições econômicas devidas e pagas diretamente pelo empregador contra a prestação do serviço. [A CLT] reserva, por outro lado, o termo remuneração para todos os proventos fruídos pelo empregado em função do emprego, inclusive os obtidos por terceiros, como as gorjetas”[1].[2]
Deste modo, se a lei diferencia salário de remuneração, à partida, o décimo terceiro salário apenas dirá respeito ao pagamento pelo empregador da “contraprestação devida e paga diretamente ao empregado”.[3] Contudo, nos termos do art. 7.º, VIII, da Constituição da República Federativa do Brasil, é um direito dos trabalhadores o “décimo terceiro salário com base na remuneração integral ou no valor da aposentadoria”.
Perante isto, só nos resta concluir pela imprecisão do legislador constitucional na escolha da nomenclatura que deu a deste direito dos trabalhadores. Assim, aquilo que parecia diminuir o problema, só contribui para o fomento da confusão à volta do salário vs. remuneração.
Mas, confusões terminológicas à parte, voltemos ao problema central: devem as gorjetas ser incluídas no cômputo da remuneração devida a título de férias, adicional de férias, décimo terceiro, entre outros?
Como afirma José Martins Catharino, as gorjetas são extremamente controvertidas na doutrina, isto, porque “as gorjetas possuem caraterísticas originais, daí a multiplicidade de teorias sobre sua natureza jurídica, todas procurando enfrentar suas duas particularidades principais: a de estarem subordinadas à vontade dos clientes e a de serem pagas por eles, sujeitos ocasionais e estranhos à relação de emprego”[4].
Ainda assim, segundo a Súmula 354 do Supremo Tribunal do Trabalho (doravante, STT), embora façam as gorjetas (sejam elas cobradas pelo empregador ou oferecidas espontaneamente pelos clientes) parte da remuneração do empregado, não servem estas de base de cálculo “para as parcelas de aviso-prévio, adicional noturno, horas extras e repouso semanal remunerado”[5].
No mesmo sentido, e de forma elucidativa quanto à questão em apreço, veja-se o Acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 2.ª Região (São Paulo)[6], onde, nas palavras do Magistrado Valentin Carrion se afirma que: “As gorjetas integram a remuneração (CLT, art. 457, ‘caput’); não o salário. Assim, as gorjetas se refletem no cálculo das férias, FGTS[7] e gratificação natalina. Entretanto, tal não ocorre quanto ao adicional noturno, aviso prévio, horas extra e repouso semanal remunerado, que levam em conta o salário ‘stricto sensu’”[8].
À semelhança de Eduardo Gabriel Saad, com a devida vénia, discordamos do entendimento do STT, visto que se “um dos componentes da remuneração é a gorjeta e se consta da Carteira de Trabalho do empregado a sua estimativa, aquelas verbas devem ter como base de cálculo o salário pago diretamente pelo empregador (parte fixa) acrescido da estimativa da gorjeta”.
Para além disso, pela letra da lei, não nos parece possível excluir alguns efeitos e não outros. Até porque, se a lei diz “para todos os efeitos”, qual é o critério afinal?[9] Deste modo, pese embora o entendimento do STT, consideramos que, desde que a lei faça referência a remuneração, há que incluir a gorjeta, visto que, se assim não fosse, o legislador teria optado por fazer referência a salário.
Caso contrário, criar-se-ia uma confusão absoluta entre o que a lei diz remuneração e assim o é materialmente e o que a lei diz salário e na realidade nisso se traduz. Chegar-se-ia, no limite, ao caso em que para o cálculo do valor do salário mínimo seria relevante o valor médio das gorjetas, o que seria um absurdo! Ora, se aquele valor é já o mínimo que um trabalhador pode receber para fazer face às despesas básicas do quotidiano (e que muitas das vezes representa o mínimo do mínimo), qual sentido faria um trabalhador estar dependente da voluntariedade dos clientes para fazer face às despesas mais elementares da sua vida?[10]
Deste modo, e face a tudo o exposto, concluímos pela inflexibilidade do proémio do art. 457.º da CLT, devendo-se, portanto, ter em conta a média das gorjetas, desde que registadas na Carteira Profissional do empregado, para efeitos do cálculo das férias, adicional de férias, décimo terceiro, trabalho suplementar, trabalho noturno, repouso semanal remunerado e aviso prévio.
José Lourenço Gonçalves
[1] Gomes, Orlando e Gottschalk, Elson, Curso Elementar de Direito do Trabalho, ed. 7.ª. Rio de Janeiro, Editora Forense, p. 305, apud Paes de Almeida, Amador, CLT Comentada, ed. 8.ª. São Paulo, Editora Saraiva, p. 299 (disponível em: https://pt.scribd.com/document/707221219/CLT-Comentada-Amador-Paes-de-Almeida-2014).
[2] No entanto, não posso resistir a dar nota de que, de acordo com um antigo costume, atenta a impossibilidade de controlo com precisão das gorjetas voluntárias, as partes deverão anotar na Carteira Profissional do empregado uma estimativa, quer das gorjetas compulsórias (cobradas diretamente pelo empregador aos clientes), quer das voluntárias (em que o cliente, livremente a entrega ao trabalhador). Vd. Saad, Eduardo Gabriel, Consolidação das Leis do Trabalho: Comentada, ed. 37.ª, revista e ampliada por José Eduardo Duarte Saad e Ana Maria Saad Castello Branco. São Paulo, Editora LTr, 2004, p. 322 (disponível em: https://pt.scribd.com/document/183817893/CLT-Comentada#content=query%3A457%2CpageNum%3A10%2CindexOnPage%3A0%2CbestMatch%3Afalse&page=322 PDF).
[3] Saad, Eduardo Gabriel, Consolidação das Leis do Trabalho: Comentada, ed. 37.ª, revista e ampliada por José Eduardo Duarte Saad e Ana Maria Saad Castello Branco. São Paulo, Editora LTr, 2004, p. 322 (disponível em: https://pt.scribd.com/document/183817893/CLT-Comentada#content=query%3A457%2CpageNum%3A10%2CindexOnPage%3A0%2CbestMatch%3Afalse&page=322 PDF).
[4] Martins Catharino, José, Tratado Jurídico do Salário, p. 550, apud Paes de Almeida, Amador, CLT Comentada, ed. 8.ª. São Paulo, Editora Saraiva, p. 301 (disponível em: https://pt.scribd.com/document/707221219/CLT-Comentada-Amador-Paes-de-Almeida-2014).
[5] Consulta disponível em: https://www.coad.com.br/busca/detalhe_16/1024/Sumulas_e_enunciados.
[6] Acórdão da 9.ª Turma n.º 15.893/98 (Proc. 12.633/97).
[7] Fundo de Garantia do Tempo de Serviço.
[8] Paes de Almeida, Amador, CLT Comentada, ed. 8.ª. São Paulo, Editora Saraiva, p. 302 (disponível em: https://pt.scribd.com/document/707221219/CLT-Comentada-Amador-Paes-de-Almeida-2014).
[9] Note-se que, quando José Rodrigues dos Santos afirmou “Boa tarde. Morreram todos.”, tal significou que não sobraram sobreviventes. Não quis o apresentador afirmar que morreram a totalidade dos ocupantes do submersível Titan, à exceção de um dos ocupantes. Todos, são mesmo todos!
[10] No mesmo sentido, Eduardo Gabriel Saad, o qual afirma que no proémio do art. 457.º da CLT, tem nele implícito “que a remuneração não pode ser formada, apenas, de gorjetas; nela se inclui, obrigatoriamente, o salário de valor igual ou superior ao mínimo previsto em lei” in Consolidação das Leis do Trabalho: Comentada, ed. 37.ª, revista e ampliada por José Eduardo Duarte Saad e Ana Maria Saad Castello Branco. São Paulo, Editora LTr, 2004, p. 322 (disponível em: https://pt.scribd.com/document/183817893/CLT-Comentada#content=query%3A457%2CpageNum%3A10%2CindexOnPage%3A0%2CbestMatch%3Afalse&page=322 PDF).