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Descanso, Antiguidade e Desvalorização: Lições do Supremo Tribunal de Justiça sobre Justa Causa

O despedimento disciplinar constitui, porventura, uma das matérias mais sensíveis no quadro das relações laborais. Por um lado, a lei reconhece ao empregador a faculdade de sancionar comportamentos que tornem inexigível a manutenção do vínculo laboral, por outro, consagra ao trabalhador a tutela de direitos fundamentais que se projetam na relação de trabalho, impondo que a sanção máxima (o despedimento) seja sempre medida de último recurso e sujeita a um escrutínio particularmente exigente.

O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, em análise, inscreve-se precisamente nesse campo de tensão. Dele emerge um percurso processual que não é invulgar: desde a decisão de primeira instância que julgou lícito o despedimento, passando pela Relação que parcialmente revogou a decisão, até à apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça, a quem competiu, em sede de revista, reavaliar a existência de justa causa.

O Código do Trabalho, no artigo 351.º, define a justa causa disciplinar como “o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho”. Esta noção, densificada pela jurisprudência e pela doutrina, reclama uma ponderação casuística, em que a gravidade da infração, a intensidade da culpa e as circunstâncias concretas da prestação laboral se articulam num equilíbrio delicado.

No caso em apreço, a empregadora invocou diversas violações dos deveres laborais: obediência, zelo e diligência, boa-fé e urbanidade, imputando à trabalhadora condutas relacionadas com a elaboração de escalas, a reposição de stocks, a falta de resposta a chamadas telefónicas em dia de descanso e alegados comportamentos desrespeitosos perante colegas e utentes.

O caso vertente coloca-nos perante uma Diretora Técnica, contratada para funções de natureza eminentemente estratégica e de direção. Pergunta-se: pode alguém nesta posição ser chamado a executar tarefas operacionais como a reposição de stocks? Dir-se-á, com facilidade, que todos os trabalhos são dignos e que em tempos de aperto “quem tem unhas toca guitarra”. Mas também não é menos certo que a lei protege a dignidade profissional e impede que a entidade empregadora imponha tarefas que, pela sua natureza, possam significar rebaixamento ou desvalorização.

A tensão entre o dever de obediência e o direito do trabalhador a não ser desvalorizado profissionalmente encontra eco nos artigos 118.º e 120.º do Código do Trabalho, que vedam a imposição de tarefas suscetíveis de desqualificar o trabalhador ou modificar substancialmente a sua posição contratual. Todavia, não deixa de subsistir a ideia de que, em situações práticas, a responsabilidade pela qualidade e segurança dos serviços pode implicar a intervenção direta do dirigente em aspetos logísticos ou operacionais.

Outro ponto de relevo foi a ausência de resposta imediata a contactos telefónicos ocorridos no dia de descanso semanal da trabalhadora. A questão suscita reflexão: até que ponto pode o dever de diligência e de boa-fé ser interpretado como obrigação de disponibilidade permanente, mesmo em posição de chefia ou direção? E em que medida tal exigência colide com o direito constitucionalmente protegido ao repouso e ao equilíbrio entre vida pessoal e profissional?

O Supremo Tribunal de Justiça parece reconhecer que, salvo em situações de força maior, a exigência de prontidão absoluta esvaziaria o direito ao descanso, cabendo ao empregador estruturar mecanismos que assegurem o normal funcionamento da atividade sem sacrificar a esfera privada do trabalhador.

Por fim, relatou-se momentos de tensão com colegas de trabalho e de antecedentes disciplinares da trabalhadora. Surge, então, a questão da proporcionalidade: em que medida tais factos, isolados ou cumulados, poderiam legitimar a rutura do vínculo? A jurisprudência tem sido cautelosa em admitir que infrações de menor gravidade – ainda que censuráveis – possam justificar a medida extrema do despedimento, exigindo-se sempre uma avaliação rigorosa da adequação e proporcionalidade da sanção disciplinar (art. 330.º, n.º 1, CT).

Considerou-se ainda a antiguidade da trabalhadora. A entidade empregadora entendeu-a como fator agravante da responsabilidade disciplinar, por pressupor maior maturidade e exemplaridade. O Supremo, porém, entendeu diversamente, salientando que a antiguidade não pode, por si só, ser convertida em agravante automática.

Assim, o Supremo Tribunal de Justiça manteve a decisão da Relação que declarara ilícito o despedimento da trabalhadora. Ficou assente que as funções de direção e planeamento, que constituíam o objeto do contrato de trabalho, não se confundem com tarefas meramente executivas, como a reposição de stocks, sendo ilegítima a imposição de ordens suscetíveis de desqualificação profissional.

Do mesmo modo, o Tribunal reafirmou que o direito ao descanso semanal não pode ser neutralizado pela exigência de disponibilidade permanente, sob pena de esvaziamento de um direito fundamental do trabalhador, independentemente da posição que este ocupe. Quanto às alegadas faltas de urbanidade e antecedentes disciplinares, reconheceu-se a sua existência, mas entendeu-se que não assumiam gravidade suficiente para, em termos proporcionais, legitimar a aplicação da sanção máxima. Por último, afastou-se a ideia de que a antiguidade pudesse constituir fator agravante automático no juízo disciplinar.

Este acórdão revela, assim, uma linha de orientação clara e nós continuaremos atentos à jurisprudência corrente.

Carolina Caldeira Fernandes

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