Sendo as portarias de extensão uma realidade cada vez mais presente e frequente no contexto laboral, segundo os dados mais recentes da Direção-Geral do Emprego e das Relações de Trabalho (DGERT), é pertinente desobscurecer e evidenciar um possível conflito entre a autonomia coletiva lato sensu e a tentativa de uniformização das condições de trabalho.
Um dos objetivos fundamentais da existência de portarias de extensão (PE) é a uniformização das condições laborais, mas a que custo?
Parece evidente que o princípio da subsidiariedade (art. 515.º do Código do Trabalho – CT) veda a possibilidade de uma portaria estender a aplicação de uma convenção a filiados numa outra associação que não a outorgante, caso aos filiados nesta segunda seja já aplicável algum instrumento de regulamentação coletiva de trabalho (IRCT), no entanto, a lei parece não vedar tal possibilidade se aos filiados na segunda associação não for aplicável qualquer IRCT.
Será assim?
Alguns autores defendem uma interpretação literal dos artigos 514.º e seguintes do CT, mas uma grande parte da doutrina defende a necessidade de se proceder a uma interpretação sistemática da lei, por forma a que se afira quais os limites efetivos ao âmbito pessoal das PE. Desta forma, segundo este setor doutrinário, só assim seria possível ter em conta valores como a autonomia coletiva lato sensu, em especial, a liberdade negocial na sua vertente negativa e a liberdade de filiação.
Ora, como apontava o saudoso Professor Romano Martinez[1], o facto de uma associação não celebrar nenhuma convenção, nem a esta aderir, depois de já celebrada, demonstra que havia alguma objeção relativa àquela convenção. A se admitir uma PE nestes termos, não só se violaria, segundo este autor, a liberdade de negociação das associações sindicais e de empregadores (art. 56.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa – CRP – e art. 443.º, n.º 1, al. a), do CT), como poderia levar a que o Governo, por meio de PE, pressionasse, de modo indireto, as associações de empregadores ou de trabalhadores, por forma a que estas aceitassem determinadas convenções com as quais não concordassem.
No entanto, poder-se-á argumentar que, determinada associação, não querendo que se lhe aplique uma dada convenção que foi alvo de PE, poderá sempre recorrer à prerrogativa ínsita no art. 516.º, n.º 3, do CT, deduzindo oposição fundamentada nos 10 dias subsequentes à publicação do projeto de PE.
Ainda assim, parece possível de argumentar, como o faz o Professor António Monteiro Fernandes[2], que não existe obstáculo jurídico à emissão das ditas PE. Este autor advoga que a limitação é imposta apenas no plano de política de emissão de portarias, segundo a qual seria de “limitar fricções e evitar constrangimentos da liberdade de atuação dos sujeitos coletivos”.
No defesa de que não há qualquer limitação à eficácia pessoal das PE, a não ser a apontada no princípio da subsidiariedade, surge a Professora Maria Palma Ramalho[3], a qual afirma inexistir qualquer restrição aos valores da liberdade de contratação coletiva, nomeadamente por ser sempre possível a celebração de uma nova e diferente convenção, a qual, por força do art. 515.º do CT, prevaleceria face à PE.
Contudo, se isto é verdade, também é que a autonomia contratual abrange a liberdade de negociação e de estipulação nas suas vertentes positiva (negociar e estipular) e negativa (não negociar e não estipular). Ora, a admitir-se estas duas facetas, parece difícil arguir que as associações poderiam negociar uma nova convenção, já que podem, livremente, optar por não querer fazê-lo, por razões que se afigurem relevantes para estas entidades.
Para além disso, há que referir que poderá estar em causa uma eventual restrição à liberdade de associação, visto que um dado trabalhador ou empregador poderá estar filiado numa certa associação porque, por exemplo, esta tem certas condições sem as quais não negoceia, ou então, porque há certos aspetos que essa associação considera essenciais e dos quais não abdica para a obtenção de certas vantagens. Facto é que esta liberdade existe e só deverá ser restringida por lei ou decreto-lei autorizado, devendo as suas normas revestir ainda um carácter geral e abstrato (arts. 18.º, n.º 3, e 165.º, n.º1, al. b), da CRP).
Ainda assim, há quem defenda, como o faz o Professor Luís Gonçalves da Silva[4], que com a emissão de uma PE não só não se limita a autonomia coletiva, como se a protege e promove, permitindo que os trabalhadores/empregadores não fiquem apenas submetidos à autonomia individual.
Face a tudo o exposto, resta debruçarmo-nos sobre a jurisprudência, a qual tem vindo a firmar entendimento no sentido de que é violador dos valores da liberdade de filiação e de celebração a emissão de portarias de extensão que abranjam trabalhadores/empregadores filiados em outra associação que não a outorgante, ainda que esta não tenha celebrado qualquer convenção[5].
Mas não só o Supremo tem tido este entendimento, visto que, por exemplo, também as Relações de Évora[6] e Coimbra[7] adotam esta mesma posição.
Ainda assim, como bem se sabe, inexiste no ordenamento jurídico português o princípio do precedente vinculativo, ficando em aberto uma possível reviravolta jurisprudencial. Deste modo, aguardemos atentos pelas cenas dos próximos capítulos.
[1] MARTINEZ, Pedro Romano, Direito do Trabalho, 11.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2023, p. 1203-1205.
[2] FERNANDES, António Monteiro, Direito do Trabalho, 19.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2019, p. 955.
[3] RAMALHO, Maria do Rosário Palma, Tratado de Direito do Trabalho: Parte III – Situações Laborais Coletivas, 4.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2023, pp.453-454.
[4] SILVA, Luís Gonçalves da, “Pressupostos, Requisitos e Eficácia da Portaria de Extensão” in Estudos do Instituto de Direito do Trabalho, Volume I, Almedina, Coimbra, 2001, pp. 699-700.
[5] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 20-06-2018, no Processo 3910/16.0T8VIS.C1.S1, em que é relator Gonçalves Rocha, disponível em https://juris.stj.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2018:3910.16.0T8VIS.C1.S1.E5?search=ND5T5dOUoGP3ZOjxNUY e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 22-06-2022, no Processo 1842/19.9T8FAR.E1.S1, em que é relator Mário Belo Morgado, disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a0f207d1664eb8258025886e0036d7f7?OpenDocument
[6] Acórdão da Relação de Évora de 2022-01-13, no Processo nº 1842/19.9T8FAR.E1, em que é relator Moisés Silva, disponível em https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/1842-2022-191014475
[7] Acórdão da Relação de Coimbra de 2025-05-30, no Processo nº 4290/23.2T8LRA.C1, em que é relator Paula Maria Roberto, disponível em https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/4290-2025-930015375
José Lourenço Gonçalves | Estagiário de verão