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Trabalho Suplementar: (Des)necessidade de Autorização Prévia?

O regime jurídico do trabalho suplementar tem sido objeto de reflexão reiterada na doutrina e na jurisprudência, em particular quando em causa está a sua articulação com vínculos laborais em regime de tempo parcial. A delimitação entre tempo de trabalho contratualmente fixado e tempo de trabalho efetivamente prestado, fora do horário, continua a levantar questões complexas sobre a configuração do dever de pagamento, a exigibilidade da autorização prévia e o papel da tolerância do empregador.

O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferiu decisão a dia 29.01.2025, no contexto de uma relação laboral entre um médico assistente e um hospital, retomando o debate do trabalho suplementar à luz do caso concreto. Estava em causa o reconhecimento de mais de 1000 horas registadas ao longo de uma década de vínculo, não pagas enquanto trabalho suplementar, mas também não compensadas em tempo.

O trabalhador, cujo contrato seria a tempo parcial, invocava a prestação de horas em volume e frequência que excediam manifestamente o seu período normal de trabalho. Argumentava que tais horas haviam sido registadas em sistema biométrico e decorriam das exigências do serviço, nomeadamente bloco operatório, enfermaria e consultas, sem oposição dos superiores hierárquicos, embora também sem autorização formal.

A entidade empregadora, por seu turno, sustentava que, na ausência de determinação expressa do Conselho de Administração, o tempo alegadamente prestado não se poderia qualificar como trabalho suplementar nos termos legais. Acrescentava que o registo dessas horas ocorrera por motivos meramente administrativos, integrando uma “bolsa” ou “saldo contratual” sem qualquer valor retributivo.

A questão central, subjacente à decisão do tribunal de primeira instância e à reapreciação em sede de recurso, prende-se com a natureza jurídica dessas horas: seriam tempo de trabalho efetivo e, se sim, sob que título deveriam ser remuneradas? E qual o papel da prática reiterada e da aceitação tácita na qualificação dessas prestações?

Importa recordar que o artigo 226.º do Código do Trabalho define como trabalho suplementar todo aquele que é prestado fora do horário de trabalho. No entanto, o artigo 268.º, n.º 2, impõe como condição para a sua remuneração que a respetiva prestação tenha sido determinada pelo empregador ou que tenha ocorrido em circunstâncias que não permitissem prever a sua oposição.

A jurisprudência tem vindo a reconhecer que a reiteração da prática, o conhecimento e a ausência de oposição por parte do empregador podem suprir a ausência de autorização formal, sobretudo quando o próprio funcionamento da organização pressuponha essa flexibilidade, tal como ocorre, em particular, nos contextos hospitalares.

Neste caso, o tribunal de recurso destacou a consistência dos depoimentos de colegas, diretores de serviço e administrativos, dando relevo ao facto de as horas estarem registadas num sistema biométrico invulnerável a manipulação, bem como à circunstância de o serviço depender estruturalmente de tal disponibilidade adicional por parte dos profissionais.

O valor probatório dos registos, a função e origem da chamada “bolsa de horas”, a eventual existência de uma prática institucional de compensação informal, e a relevância jurídica do silêncio da entidade empregadora perante o acréscimo de horas prestadas – todos estes elementos foram objeto de análise e ponderação.

As dificuldades emergem, porém, quando se tenta delimitar fronteiras entre o que é voluntário e o que é necessário, entre o que é trabalho contratado e o que é exigido pelo próprio funcionamento do serviço. Mais ainda quando se trata de quadros técnicos com autonomia técnica e responsabilidade direta pela organização do seu tempo e prioridades. Surge, inevitavelmente, a questão de saber se o tempo prestado fora do horário resulta de uma imposição funcional, de um dever profissional ou de uma escolha individual não imposta, mas também não desencorajada.

Fica ainda por apurar com precisão o valor normativo de certos usos e práticas internas, como os “saldos contratuais” ou as compensações não formalizadas – que, embora fora do quadro legal previsto para o banco de horas ou a adaptabilidade, continuam a ser usados em contextos institucionais complexos, muitas vezes por razões de gestão orçamental ou operacional.

A decisão da Relação, ao manter a condenação do empregador ao pagamento das horas, valoriza o critério da prestação efetiva de trabalho e da sua utilidade para a entidade empregadora, interpretando a ausência de oposição como aceitação tácita, e rejeitando a eficácia de mecanismos internos sem respaldo legal formal.

Ainda assim, o caso deixa abertas várias linhas de interrogação quanto à articulação entre a legalidade formal dos regimes de tempo de trabalho e a realidade factual das práticas laborais. O que se apresenta como exceção ou desvio pode, em certas circunstâncias, revelar-se estrutural. O que se desenha como violação pode, noutros olhares, surgir como adequação às exigências do serviço.

Carolina Caldeira Fernandes | Paralegal

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