Quando a negociação coletiva não fala a língua da inteligência artificial
Como sabemos, a inteligência artificial chegou discretamente às relações laborais. Já não é apenas uma ferramenta de produtividade ou um auxiliar técnico: começa a ser uma presença constante nas decisões sobre quem é promovido, quem é avaliado com melhor desempenho, quem é recrutado ou, no limite, até quem é despedido. Face a essa realidade, surgem agora as primeiras tentativas de incluir, nas negociações coletivas, cláusulas que obrigam as empresas a informar trabalhadores e sindicatos sempre que uma decisão relevante seja tomada por um sistema automatizado. À primeira vista, a ideia parece progressista: trazer transparência a um domínio onde o algoritmo se tornou invisível, mas poderoso. No entanto, sob essa aparência de modernidade, escondem-se riscos e fragilidades que merecem reflexão.
A negociação coletiva, por natureza, é o espaço onde se procura equilibrar poder e informação entre quem emprega e quem trabalha. Contudo, quando o tema é inteligência artificial, esse equilíbrio rompe-se. A maioria das partes envolvidas não domina o que está realmente em causa. Fala-se em “decisões automatizadas” sem se definir o que isso significa: será toda e qualquer decisão mediada por sistemas digitais, ou apenas aquelas em que o algoritmo tem autonomia? Que dados alimentam esses modelos? Que lógica seguem? Que tipo de explicação é possível oferecer a um trabalhador afetado por uma decisão algorítmica? São perguntas para as quais quase ninguém tem resposta — e, no entanto, são nelas que assenta a credibilidade destas novas cláusulas.
O risco maior é que este movimento acabe por se tornar apenas simbólico. Obrigar uma empresa a “informar” que uma decisão foi tomada por um sistema de IA pode ser, na prática, o mesmo que nada. Informa-se, cumpre-se o formalismo, e o trabalhador continua sem compreender por que motivo foi avaliado de determinada maneira ou preterido num processo. É uma transparência de fachada, que produz o conforto psicológico de uma inovação social, mas sem alterar as relações de poder que a negociação coletiva deveria reequilibrar. A tecnologia, nesse caso, serve mais para legitimar decisões do que para as esclarecer.
Há também uma assimetria de conhecimento impossível de ignorar. De um lado, empresas com acesso a consultores, departamentos de análise de dados e alguma literacia tecnológica elevada; do outro, sindicatos e representantes que, apesar da boa vontade, raramente dispõem de peritos em algoritmos, ética digital ou ciência de dados ou, em circunstâncias semelhantes, as PMEs. É um desequilíbrio novo, mas profundo. A negociação coletiva, que nasceu para corrigir desigualdades materiais, depara-se agora com uma desigualdade cognitiva. E sem literacia técnica, a mesa de negociação transforma-se numa armadilha: as partes podem assinar cláusulas cujo alcance não compreendem, acreditando estar a proteger os seus interesses.
Nada disto significa que a tentativa de introduzir a inteligência artificial no diálogo social seja inútil. Pelo contrário: é um passo necessário. Pela primeira vez, discute-se a transparência algorítmica como um direito laboral, e isso é um avanço notável. Mas é um avanço que exige substância. Não basta dizer que haverá informação; é preciso definir que tipo de informação, em que formato, com que frequência e com que possibilidade de verificação. Se o algoritmo erra, quem responde? Se os dados usados são enviesados, quem garante a correção? E se a decisão automatizada tiver efeitos discriminatórios, que mecanismos de recurso estão disponíveis? Enquanto estas questões não forem respondidas, as boas intenções continuarão a ser promessas ocas.
Tudo indica, contudo, que este será apenas o início de uma nova tendência. Tal como no passado as negociações coletivas introduziram cláusulas sobre igualdade de género, segurança no trabalho ou conciliação entre vida pessoal e profissional, é natural que o futuro traga cláusulas sobre algoritmos, dados e decisões automatizadas. A inteligência artificial não é um tema passageiro; é o novo ambiente em que as relações laborais terão de aprender a respirar. A questão é saber se o farão de forma consciente ou apenas reativa, copiando modas e resoluções sem perceber o que está realmente em jogo.
Porque, no fundo, discutir inteligência artificial no trabalho é discutir futuro. Se a tecnologia se torna o novo árbitro invisível dessas decisões, então a negociação coletiva não pode limitar-se a acolhê-la com ingenuidade. É preciso questioná-la, mas, acima de tudo, compreendê-la. Negociar sem saber o que se está a negociar é abdicar do próprio propósito da negociação.
O desafio que se impõe não é apenas jurídico, é cultural e formativo. Os sindicatos e representantes das empresas terão de adquirir competências técnicas, compreender o funcionamento básico dos sistemas de IA, aprender a identificar riscos de viés, de discriminação e de opacidade. Do outro lado, as empresas terão de assumir uma responsabilidade ética real, reconhecendo que a tecnologia não é neutra e que as suas decisões — por mais automatizadas que sejam — têm impacto humano. Sem essa dupla consciência, qualquer acordo sobre IA no trabalho será apenas uma folha de papel bem-intencionada.
A inteligência artificial está a reconfigurar a forma como trabalhamos, decidimos e convivemos nas organizações. A negociação coletiva pode e deve acompanhar esse movimento, mas só será transformadora se for informada. Caso contrário, ficará refém do mesmo automatismo que pretende regular. E o pior que pode acontecer à política laboral é confundir modernidade com submissão tecnológica. O futuro do trabalho não se decide em linhas de código, mas na capacidade humana de entender o que o código faz — e de reivindicar justiça, mesmo quando é uma máquina que decide.
A Equipa Direito Criativo