Acidentes in itinere são definidos na sua génese como uma extensão do conceito pré-existente do acidente de trabalho, incorporando o percurso que o trabalhador cumpre no âmbito de acesso (e regresso) ao local de trabalho para desempenhar a atividade laboral, e os riscos associados ao mesmo. Não obstante, o trabalhador é sempre livre de escolher o trajeto e a forma como o executa e de, naturalmente, efetuar desvios para atender a necessidades quotidianas, daí ser cada vez mais debatido pela legislação portuguesa.
Se um acidente de trabalho se consubstancia no infortúnio de ocorrer uma lesão física ou perturbação psicológica no período tendencialmente compreendido no horário de trabalho (ou no decorrer das suas funções enquanto trabalhador), que impossibilite total ou parcialmente o trabalhador de desempenhar a sua prestação laboral, o acidente no itinerário (acidente in itinere) vem introduzir uma delimitação mais alargada. Esta figura propõe que se cubram os acidentes ou doenças profissionais fora do local de trabalho, em itinerários de trajeto para o local de trabalho ou para a residência do trabalhador, presumindo que este trajeto segue o percurso previsível e normal do trabalhador. Assim, seria o trabalhador, também, protegido por eventuais adversidades que ocorram neste período de tempo, à luz do definido no art.º 9 da Lei dos Acidentes de Trabalho (doravante, LAT).
Segue-se a indagação se o trabalhador pode arguir que todas as deslocações que realize antes e após o período laboral se inserem na proteção desta figura jurídica. Até que ponto é que podemos ampliar esta esfera de risco? Até que ponto pode o trabalhador desviar-se do seu percurso habitual sem perder a proteção legal? Quanto a estas questões pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão datado de 2 de abril de 2025, que subsume o acidente de trabalho in itinere a todas as situações que não sejam consideradas desrazoáveis atendendo ao critério do art.º 9 da LAT, recaindo sobre o trabalhador o ónus de observar certos padrões de cuidado.
Os desvios justificados, no entendimento do STJ, compreendem alterações pontuais, tolerando-se situações como abastecimento de combustível ou recolher os filhos na escola. Impõe-se, deste modo, uma inadiabilidade de compromisso que legitima o desvio, compatibilizando-o com o quotidiano. O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, em decisão proferida a 29-04-2020, foi ainda mais longe e concordou estender este conceito a abranger efémeras visitas ao supermercado, aceitando-se paragens de índole social ou por razões pessoais – desde que se fundamente um nexo com o exercício da atividade profissional e não se afigure um abuso de confiança por parte do trabalhador.
Ora, se a uma primeira vista parece simples, o que é certo é que, como tradicionalmente se diria, “o Diabo está nos detalhes”. De facto, existem decisões divergentes deste entendimento (cfr., a título exemplificativo, Acórdão da Relação do Porto, proferido a 22-10-2018), sendo defendida uma visão mais restrita em que, encontrando-se na esfera privada do trabalhador, a modificação do trajeto para atender a tarefas do dia a dia, ultrapassa o limite da sua extensão. Em termos latos, quer isto dizer que a aparente extensão do conceito de acidentes de trabalho que nos é proporcionada pela LAT quanto aos acidentes in itinere pode sempre ser arguida consoante as circunstâncias do caso em apreço e julgada atendendo às “necessidades atendíveis do trabalhador” (n º 3 do art.º 9 LAT).
A consequência derivada da sua apreciação e consolidação como acidente de trabalho in itinere implica que o empregador é responsável pela reparação dos danos emergentes. Na eventualidade de ser descaraterizado como acidente de trabalho, absolve-se o empregador de toda a responsabilidade.
Naturalmente, concluímos que se trata de um conceito abrangente, que se deve analisar consoante o caso em apreço, tendo sempre em consideração critérios de razoabilidade, apesar da aparente flexibilidade na interpretação deste conceito. A extensão deste conceito deriva do facto deste instituto ter sido criado com a ideia fundamental da proteção do trabalhador e dos direitos inerentes à sua condição. Não obstante, está o trabalhador adstrito a manter um padrão de cuidado e responsabilidade não só durante o período da prestação de trabalho, mas também no trajeto de ida e volta ao local de trabalho.
Ana Teresa Soares – Estagiária de Verão