O combate à discriminação é um dos pilares fundamentais do ordenamento jurídico da União Europeia, refletindo os valores de dignidade, igualdade e respeito pelos direitos fundamentais consagrados nos tratados e na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Nesse contexto, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) desempenha um papel central ao interpretar e aplicar as normas de Direito Antidiscriminação, assegurando a sua efetividade no espaço europeu.
Desta forma, a melhor forma de nos mantermos atualizados e acompanharmos a evolução do TJUE nestas matérias, é através da análise das suas decisões mais recentes. Por isso, neste artigo, iremos analisar uma decisão emitida por este Tribunal, a 11 de setembro, precisamente sobre matérias de Direito Antidiscriminação,
No processo em questão, C-38/24, podemos destacar os seguintes conceitos-chave: (i) Discriminação em razão da deficiência; (ii) discriminação indireta; (iii) discriminação por associação.
Quanto à factualidade do caso em apreço, este opõe um trabalhador à sua entidade empregadora, em Itália. Pai de uma criança portadora de deficiência grave e que apresenta uma incapacidade total, o trabalhador solicitou a sua alocação a um posto com horários fixos, de forma a poder conciliar a atividade profissional com os cuidados ao filho, nomeadamente, acompanhá-lo a tratamentos, a horas fixas, à tarde. Face a este pedido, a empresa não acedeu ao mesmo, ainda que tivesse concedido algumas adaptações de condições de trabalho.
Perante essa recusa, o trabalhador recorreu aos tribunais nacionais, e pediu que a decisão da Empregadora em não aceitar o seu pedido de adaptação das suas condições de trabalho, a título permanente, fosse considerada discriminatória. A 1ª instância julgou improcedente o pedido, e a 2ª instância acompanhou este entendimento, considerando suficientes as medidas adotadas. O autor interpôs recurso no Supremo Tribunal De Cassação, que decidiu suspender a instância e remeter ao TJUE duas questões prejudiciais, que se afiguram muito relevantes:
1. A Diretiva 2000/78, em especial o artigo 1.º e o artigo 2.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b) — deve ser interpretada, à luz dos artigos 21.º, 24.º e 26.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e dos artigos 2.º, 5.º e 7.º da Convenção da ONU, no sentido de que a proibição de discriminação indireta em razão de deficiência também protege um trabalhador que, não sendo ele próprio portador de deficiência, sofre tratamento discriminatório em virtude da assistência que presta ao seu filho com deficiência.
O Tribunal destacou, em primeiro lugar, que a proibição de discriminação já se aplica a situações de “discriminação por associação”: não se limita apenas às pessoas que são elas próprias portadoras de deficiência, mas também pode abranger trabalhadores que sofrem tratamento menos favorável devido à deficiência de alguém a seu cargo.
Além disso, o Advogado-Geral sublinhou, nas suas conclusões, a importância da Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. A Comissão criada por esta Convenção entende que a obrigação de proibir discriminação em razão de deficiência também deve proteger as pessoas do círculo próximo das pessoas com deficiência — como os pais ou cuidadores. Esse entendimento reforça a ideia de que a proteção não deve ficar limitada aos casos de discriminação direta.
Com base nestes elementos, o TJUE concluiu que a Diretiva 2000/78 deve ser interpretada no sentido de que a proibição de discriminação indireta em razão de deficiência se aplica também a um trabalhador que, embora não seja ele próprio portador de deficiência, é alvo dessa discriminação em virtude da assistência que presta ao seu filho com deficiência, a quem assegura os cuidados essenciais que a sua condição requer.
2. A Diretiva 2000/78 — em especial o artigo 5.º — deve ser interpretada, à luz dos artigos 24.º e 26.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e dos artigos 2.º e 7.º da Convenção da ONU, no sentido de que uma entidade empregadora está obrigada a adotar adaptações razoáveis para um trabalhador que, não sendo portador de deficiência, presta cuidados a um filho com deficiência, garantindo-lhe os cuidados essenciais de que necessita, de forma a respeitar o princípio da igualdade e a proibição de discriminação indireta.
O TJUE, acompanhando as observações do Advogado-Geral, salientou que as adaptações razoáveis previstas no artigo 5.º da Diretiva 2000/78 não se limitam às necessidades das pessoas com deficiência no seu local de trabalho. Se for o caso, essas adaptações devem também ser concedidas a um trabalhador que presta assistência ao filho com deficiência, garantindo-lhe os cuidados essenciais de que necessita.
O Tribunal destacou que, sem essa obrigação, a proibição de discriminação indireta “por associação” perderia grande parte do seu efeito útil. As medidas de adaptação devem permitir que o trabalhador, mesmo não sendo portador de deficiência, possa conciliar a atividade profissional com a assistência prestada ao filho, assegurando participação plena e igualdade de condições no trabalho.
Assim, conclui-se que a Diretiva 2000/78, interpretada à luz da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e da Convenção da ONU, obriga o empregador a adotar adaptações razoáveis para um trabalhador cuidador, desde que tais medidas não impliquem um encargo desproporcionado para a entidade patronal.
Ao reconhecer a proteção contra discriminação indireta para cuidadores de pessoas com deficiência, o Tribunal sublinha que a igualdade não é apenas formal — não basta que todos tenham os mesmos direitos “no papel”. A igualdade também se constrói considerando as circunstâncias concretas que podem colocar certos trabalhadores em desvantagem.
Nesta senda, esta decisão reforça uma abordagem funcional do direito antidiscriminação: o foco não está apenas na deficiência do trabalhador, mas nas barreiras que podem surgir a partir das suas responsabilidades familiares. Em termos teóricos, trata-se de expandir a proteção por associação, reconhecendo que a discriminação pode ir muito além dos fatores discriminatórios mais óbvios e diretos.
Do ponto de vista do empregador, o acórdão do TJUE no caso C-38/24 é um alerta estratégico e jurídico: evidencia que a proteção antidiscriminação no trabalho não se limita a situações óbvias ou a trabalhadores portadores de deficiência, podendo também estender-se a familiares e cuidadores.
Assim, as empresas devem estar atentas a três pontos essenciais:
- Discriminação indireta e por associação – Tratamentos menos favoráveis a trabalhadores que cuidam de familiares com deficiência podem ser considerados discriminação indireta. Recusas ou ajustes insuficientes podem gerar responsabilidade jurídica, mesmo que o trabalhador não seja portador de deficiência.
- Adaptações razoáveis – O Tribunal deixa claro que a obrigação de conceder adaptações não é abstrata. Devem ser proporcionais e permitir ao trabalhador conciliar funções profissionais com responsabilidades de cuidado. Contudo, existe um limite: as adaptações não devem criar um encargo desproporcionado para a empresa.
- Planeamento e políticas internas – O acórdão reforça a importância de as empresas terem políticas claras de conciliação e de gestão de horários, funções e adaptações. Avaliar caso a caso, documentar decisões e manter diálogo com os trabalhadores é fundamental para mitigar e antecipar litígios.
Em resumo, a decisão sublinha que, para os empregadores, a conformidade com o direito antidiscriminação exige atenção proativa: não basta reagir a reclamações pontuais, é necessário identificar antecipadamente situações de vulnerabilidade, através da criação de políticas claras, antecipação de necessidades de adaptação e gestão de casos de forma estruturada, para minimizar estas situações discriminatórias.
Como sempre, manter-nos-emos atentos às próximas decisões do TJUE nesta matéria, que, a avaliar pela tendência recente, certamente não deverão tardar.
Filipa Bilé Grilo