Numa altura em que se debatem as alterações propostas à legislação laboral, retomamos a publicação do aguardado Acórdão n.º 555/2025do Tribunal Constitucional (disponível aqui), que apreciou a (in)constitucionalidade das normas constantes dos artigos 10.º, n.º 3, e 338.º-A do Código do Trabalho (CT). O Acórdão convida-nos a uma reflexão tensa e urgente sobre os limites constitucionais da proteção laboral numa sociedade que já não é industrial, mas cada vez mais digital, desmaterializada e assente em ciclos de trabalho cada vez mais curtos, especializados e tecnologicamente mediados. A pergunta que não deixa calar é, no fundo, de saber se a Constituição económica e social de 1976, com a sua compreensão densa do valor do emprego por conta de outrem e da proteção dos direitos dos trabalhadores, resiste (resiste demasiado ou até mesmo se deverá resistir) à transformação radical do trabalho no século XXI.
No seguimento do pedido de fiscalização abstrata sucessiva pela Provedora de Justiça, o Tribunal Constitucional considerou como conforme à constituição a norma que determinam a proibição da terceirização durante 12 meses após despedimento coletivo ou extinção de posto de trabalho, quando a externalização se destine a garantir a satisfação das mesmas necessidades que era assegurada pelo(s) trabalhador(es) despedido(s). Igual entendimento apresentou quanto à norma que impede a substituição de um trabalhador independente economicamente dependente por outro durante o exercício de direitos de parentalidade – isto é, o recurso e imposição unilateral pelo trabalhador, a substituto na prestação de trabalho.
Ambas as normas pretendem proteger os mais vulneráveis, isto é, por um lado, os trabalhadores despedidos, face à externalização potencialmente fraudulenta, isto é, o recurso indevido aos mecanismos do despedimento coletivo ou extinção de posto de trabalho. Por outro lado, os trabalhadores independentes economicamente dependentes em situação de parentalidade, que não se qualificam tecnicamente como “trabalhadores” para efeitos da tradicional relação laboral subordinada.
Mas o problema que subjaz a ambas é mais profundo e atinge o âmago da nossa cultura jurídico-laboral, muitas vezes (poderão dizer) prisioneira de uma noção de proteção absoluta, impermeável à evolução tecnológica, à diversificação de formas de trabalho e à necessidade de adaptação dos modelos empresariais.
Entre a proteção e a rigidez: observamos um direito do trabalho em fricção
A declaração de voto do Juiz Conselheiro João Carlos Loureiro não poupou nos termos, falando mesmo de uma “proibição total, sem qualquer diferenciação”, e considerando que a solução legislativa do artigo 338.º-A do CT viola o princípio da proibição do excesso, justamente por falhar o teste da necessidade e da exigibilidade. A proteção do emprego, segundo o Juiz Conselheiro, não pode operar por cegueira normativa às mudanças estruturais do mundo do trabalho, uma vez que a substituição por prestadores de serviços externos não é sempre sinónimo de fraude, e a externalização nem sempre destrói emprego – pode mesmo preservá-lo. A jurisprudência francesa, por exemplo, e a doutrina comparada apontam nesse sentido.
A tese é simples: proibir indistintamente o recurso à prestação de serviços por serviços externos, para as mesmas tarefas e durante 12 meses, mesmo quando a sobrevivência da empresa depende dessa reestruturação, é constitucionalmente excessivo (entende). A medida pode falhar o próprio fim que visa (a proteção dos trabalhadores despedidos e a luta contra a fraude empresarial) e comprometer outros (a manutenção dos postos de trabalho restantes e a viabilidade da empresa). Permanecem, por isso, dúvidas quanto à passagem desta norma no crivo da adequação.
Por outro lado, a norma do artigo 10.º, n.º 3, sobre substituição de trabalhadores independentes economicamente dependentes que se encontrem em situação de parentalidade, levanta questões próprias. Como argumenta António Monteiro Fernandes, a regra deve ser encarada, não como um dever de aceitação do substituto, mas antes como forma de não ocorrer a perda do estatuto e a proteção legal que se pretende, pelo trabalhador independente economicamente dependente. Ainda assim, é legítimo questionar se a solução legal equilibra adequadamente a liberdade contratual com a efetividade dos direitos de parentalidade fora do quadro do típico contrato de trabalho subordinado.
Mais ainda, poder-se-á questionar que se o objetivo é aproximar estes trabalhadores do regime típico do contrato de trabalho, não o contradiz afinal. É que mesmo dentro da lógica do contrato de trabalho típico, a prestação laboral é intuitu personae – isto é, baseada na confiança pessoal e na aptidão específica do trabalhador contratado. O próprio Código do Trabalho consagra a possibilidade de celebração de contratos a termo resolutivo certo para substituição de trabalhador ausente (art. 140.º, n.º 2, al. a) do CT), o que pressupõe que o empregador deve poder escolher esse substituto, avaliar a sua adequação à função e sujeitá-lo a um período experimental. Mas será que impor, mesmo que indiretamente, a aceitação de um prestador substituto num contrato de natureza autónoma, sem qualquer possibilidade de aferição prévia da aptidão ou compatibilidade, constitui uma compressão sensível da liberdade contratual ou é um seu natural reflexo? – e compromete, em última instância, a racionalidade do modelo de proteção pretendido?
Poderemos ilustrar com o seguinte exemplo: alguém contrata um pasteleiro conhecido pela qualidade dos seus bolos de aniversário, mas este informa que quem fará o bolo será “um primo, que também é pasteleiro”. O resultado final – o bolo de aniversário – poderá ser obtido. Mas será que o bolo tem o mesmo sabor?
Com efeito, entende-se que o legislador tenha optado por esta solução como uma nova forma de combate aos conhecidos “falsos recibos verdes”. Poderá, no entanto, ter criado apenas mais um mecanismo que leva empregadores a ponderar ainda mais antes de avançar para a decisão de contratar?
Constituição social ou cápsula do tempo?
O Tribunal Constitucional optou por afirmar a supremacia da proteção do emprego como fim legítimo, ainda que não absoluto. Mas nas declarações de voto dos Juízes Conselheiros Maria Benedita Urbano e João Carlos Loureiro ecoa um alerta que devemos notar: um direito do trabalho que se recusa a distinguir entre fraude e evolução, entre subversão de direitos e reconfiguração legítima da atividade económica, é um direito em risco de se tornar inútil, por excesso de zelo.
A Provedora de Justiça, ao suscitar o pedido de fiscalização abstrata sucessiva, não vemos que o tenha feito para fragilizar os direitos dos trabalhadores, mas antes para garantir que a proteção à luz da Constituição seja feita com ponderação, diferença e racionalidade. O trabalho 4.0 é polimórfico, fluido e não cabe (cada vez menos) no molde fechado da relação típica de subordinação. Por isso, a legislação que visa protegê-lo não pode ser uma cartilha de intemporalidades, mas carece de ser um dispositivo de mediação entre a dignidade da pessoa e a mudança estrutural da economia.
Não se trata de ceder à idolatria do mercado, como bem adverte João Leal Amado, mas de evitar que a proteção, não sendo qualificada, se torne máscara de estagnação.
Como bem resume Maria Benedita Urbano: «a Constituição é de todos» — não apenas dos trabalhadores subordinados. O princípio da segurança no emprego deve ser ponderado com a liberdade de iniciativa económica (art. 61.º da CRP), a liberdade de organização empresarial (arts. 80.º, al. c), e 86.º, n.º 2) e, em última instância, com o direito ao trabalho dos que ficariam sem empresa para os empregar.
Entre o realismo e uma “engenharia da culpa”: por vezes, a boa intenção não basta
Na nossa atualidade, a política do direito do trabalho enfrenta críticas de se estar a transformar no que podemos apelidar de uma “engenharia da culpa contra as empresas”, quando deve ser um dispositivo inteligente de regulação, que reconheça a mudança, preveja a exceção e puna o abuso. Em especial, a solução do artigo 338.º-A do CT, tal como está desenhado, não distingue “o trigo do joio”, isto é, entre o empregador que despede sem fundamento legal e aquele que precisa de externalizar para sobreviver. Esta equivalência cega é, em si mesma, uma forma de injustiça.
A Constituição é um documento vivo. Mas precisa de um legislador que a atualize com realidade e um Tribunal Constitucional que a leia com alguma dose de coragem, sem perder, contudo, de vista, as garantias constitucionalmente garantidas. A proteção necessária não pode travar o progresso inadiável a todo o custo. Se assim for, a “cláusula de salvaguarda” que é a Constituição, corre o risco de transforma-se numa espécie de museu de garantias. E um direito do trabalho que quer ser eterno é, talvez, um direito do trabalho perdido no tempo.
Rui Rego Soares