Fala-se da transparência salarial como se fosse apenas mais uma diretiva europeia a transpor. Mas será que entendemos o que realmente está em causa? Imagine abrir o jornal e ver o nome da sua empresa associado a este título: “Trabalhadores descobrem diferença salarial injustificada de 12% – empresa sob investigação.”. Será assim apenas um problema de números?
Durante décadas, falar de salários foi um tabu, um tema reservado a envelopes fechados, tabelas internas ou conversas de corredor. Em 2026, segundo a diretiva, anúncios de emprego deverão indicar, pelo menos, bandas salariais. Os trabalhadores poderão exigir conhecer médias remuneratórias por género em funções equivalentes, e os critérios de progressão terão de ser claros e verificáveis. Mais: relatórios periódicos sobre disparidades salariais tornar-se-ão rotina para médias e grandes empresas, com fiscalizações sempre que se identifiquem diferenças salariais superiores a 5%.
A promessa é sedutora: mais justiça, menos discriminação, maior confiança. Se tudo parece claro, existe um lado menos óbvio. Quando mal preparada, a transparência pode gerar comparações simplistas, tensões internas e a judicialização em larga escala. A título de exemplo, a prevista inversão do ónus da prova sobre diferenças discriminatórias fará recair sobre as empresas o peso de demonstrar que não discriminam.
Em Portugal, desde 2019, empresas com 50 ou mais trabalhadores são obrigadas a justificar disparidades salariais entre géneros e, em certos casos, a implementar planos de correção. Em 2025, cerca de quatro mil entidades foram notificadas pela ACT nesse sentido.
E é aqui que surgem os dilemas, avaliar e justificar disparidades salariais não é apenas um exercício jurídico: exige métricas sólidas, matrizes de funções, critérios objetivos e narrativas consistentes. Preparar relatórios periódicos implica recolher dados com rigor e enquadrá-los numa comunicação que evite leituras simplistas. Negociar com representantes dos trabalhadores requer técnica, método e estratégia.
Pesadelo: como se devem preparar as empresas?
A chave é agir antes de ser obrigado. Algumas linhas de atuação recomendadas:
- Auditorias salariais preventivas: diagnosticar disparidades e corrigi-las internamente antes de serem expostas;
- Mapeamento de cargos e funções: definir uma matriz objetiva de avaliação (complexidade, responsabilidade, autonomia e competências) que permita ter um roademap interno fácil de navegar;
- Grelhas salariais estruturadas: criar patamares salariais claros, mas flexíveis, que permitam progressão e assegurem racionalidade;
- Política de comunicação: narrativas internas transparentes, explicando critérios salariais em linguagem acessível;
- Formação de gestores e RH: capacitar quem recruta, avalia e promove para aplicar as novas regras sem erros de execução;
- Envolvimento dos representantes: antecipar diálogo social, transformando obrigações legais em instrumentos de cooperação;
- Assessoria especializada: conjugar dimensão jurídica, técnica e estratégica é o que evita que um bom princípio se torne litígio.
Oportunidade: vantagem competitiva?
A transparência tem, de facto, duas faces. (i) Vista apenas como imposição legal, pode transformar-se num pesadelo organizacional, feito de relatórios, auditorias e potenciais litígios; (ii) Mas encarada de forma estratégica, pode ser uma oportunidade rara: As empresas que se antecipem podem sair reforçadas em várias frentes, nomeadamente:
– Employer branding: imagem estruturada, justa, com tradução na atração e retenção de talento num mercado competitivo e em que muitas vezes são os trabalhadores que escolhem o empregador;
– Confiança interna e controlo da narrativa: revisão de grelhas salariais, políticas internas, clarificação critérios de progressão, reforço da cultura de mérito; e
– Segurança jurídica: preparar hoje auditorias internas e políticas de comunicação para evitar sanções, litígios e más headlines amanhã.
Aliás, na Littler estamos a desenvolver uma ferramenta “EU Pay Transparency Tracker” que visa permitir aos nossos clientes manterem-se atualizados sobre o quadro legal aplicável, bem como avanços verificados a propósito da transposição da Diretiva da Transparência Salarial, em cada momento, em diversos países da União Europeia, bem como as obrigações (e correlativos direitos dos trabalhadores) a que as empresas se encontram adstritas nos mesmos. Esta ferramenta é reflexo do compromisso assumido de providenciar uma assessoria preventiva e, nesse sentido, um passo à frente dos acontecimentos, permitindo a empresas antecipar medidas e mitigar riscos, como preparar planos de ação e políticas internas.
A pergunta não é, portanto, se a transparência vai chegar, porque vai. Quem se preparar cedo, com método e visão, transformará a obrigação em vantagem competitiva. Quem esperar pelo último minuto arrisca-se a descobrir que salários às claras não são apenas uma questão de conformidade legal, mas um teste à maturidade cultural e estratégica de cada organização.
Num mercado onde a confiança é moeda parca, esse teste pode separar empresas resilientes das que ficam pelo caminho.
De que lado vai estar?
Cláudio Rodrigues Gomes
Rui Rego Soares