Um acórdão bastante recente –- STJ 03/07/2024 – Pº 10534/21. 8T8LSB.L1.S1 (Júlio Gomes) – veio chamar a atenção para um problema antigo, que a nossa lei resolve de modo não inteiramente consensual: o da prescrição de créditos no contrato emergentes do contrato de trabalho.
O litígio decidido por esse acórdão tinha por objeto fundamental a qualificação, retributiva ou não, de remunerações por trabalho suplementar regularmente prestado, para o efeito da sua consideração no cálculo da remuneração do período de férias, do subsídio de férias e do subsídio de Natal. O cenário do litígio era o trabalho portuário, e provou-se que, na verdade, ao longo de toda a vigência do seu contrato, o trabalhador recebia, mês após mês, importâncias relativamente importantes a título de remuneração de trabalho suplementar. O acórdão, invocando doutrina e jurisprudência constantes, além das soluções legislativas pertinentes, decidiu no sentido de que, sendo esses valores de natureza retributiva (dada a regularidade do seu pagamento), deveriam ter sido computados (em média anual) na remuneração das férias e nos subsídios de férias e de Natal.
A particularidade do caso reside no facto de o contrato ter durado nada menos de 34 anos – de 1985 a 2019 – , tendo-se provado que o trabalhador nunca, ao longo desse período, reclamou a inclusão daqueles valores nas prestações em causa. Acresce que a contratação coletiva em vigor nesse período regulava as mesmas prestações em termos de excluir a consideração da remuneração por trabalho suplementar. Pode, pois, dizer-se que tanto o empregador como o trabalhador estavam convencidos de ser essa a prática remuneratória correta.
Com esses fundamentos, a entidade empregadora invocou a existência de abuso de direito, qualificando a própria iniciativa processual do trabalhador como uma manifestação de má fé. Nessa perspetiva, a pretensão do trabalhador, deduzida apenas após a cessação do vínculo, deveria ser desconsiderada.
O acórdão arredou a questão em poucas linhas, atendo-se à orientação praticamente uniforme que tem prevalecido: “Relativamente ao invocado abuso de direito por parte do trabalhador o argumento não procede porquanto é necessário ter em conta a situação de subordinação em que se encontra o trabalhador durante a vigência do contrato de trabalho. É natural que o trabalhador não reaja contra violações dos seus direitos no temor de que tal possa repercutir-se em retaliações ou em todo o caso em uma deterioração do ambiente laboral e por isso mesmo não pode de todo reputar-se como manifestamente contrário à boa fé o comportamento do trabalhador que só depois de cessar o contrato de trabalho é que vem exigir prestações a que tinha direito. E, sublinhe-se, que esta é uma das razões apontadas para a solução legislativa de a prescrição dos créditos emergentes de contrato de trabalho só ocorrer após a cessação do contrato de trabalho.”
Na verdade, o art. 337º do Código do Trabalho estabelece que os créditos do trabalhador e do empregador prescrevem “decorrido um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho”.
Mas este preceito não permite ignorar que há um problema – o dos créditos muito antigos e nunca reclamados, até ao momento em que o contrato cesse, e que podem colocar as entidades empregadoras perante inesperados e avultados encargos financeiros – e que esse problema não encontra na lei solução que deixe tranquilo e satisfeito o senso jurídico comum. Sendo verdade que a situação de dependência psicológica do trabalhador deve ser considerada, é verdade também que a subordinação tem diversos graus e cambiantes, e a experiência judiciária atual evidencia, em muitos casos, que a as ações reclamatórias dos trabalhadores insatisfeitos não dependem necessariamente da cessação dos vínculos de trabalho.
De resto, o art. 337º não comporta, de um ponto de vista objetivo, uma única possibilidade interpretativa – embora tenha que se reconhecer que a vontade real do legislador histórico não se terá afastado do entendimento constante que, há muito tempo, tanto os tribunais como a doutrina têm preconizado a este propósito.
Todavia, “de iure condendo”, casos extremos como o deste acórdão evidenciam que há um problema…
António Monteiro Fernandes @ Of Counsel, DCM | Littler