O direito do trabalho no Serviço Nacional de Saúde (SNS) é um campo jurídico complexo. Orientado para garantir o funcionamento adequado dos serviços de saúde, respeitando os direitos dos trabalhadores, bem como as necessidades de gestão e eficiência, este setor tem particularidades que exigem um conhecimento aprofundado do respetivo quadro legal.
É importante dispor de uma visão geral das principais fontes normativas, dos agentes do direito laboral (empregadores e trabalhadores) e de algumas especificidades do setor.
Fontes normativas
O direito à proteção da saúde constitui um direito fundamental, consagrado na Constituição da República Portuguesa desde 1976, estabelecendo que “todos têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover”. Para concretizar esse objetivo, com a Lei n.º 56/79, de 15 de setembro, foi criado o SNS.
A Lei de Bases da Saúde (LBS), Lei n.º 95/2019, de 4 de setembro (que revoga a Lei n.º 48/90, de 24 de agosto), estabelece os princípios gerais que orientam a prestação de cuidados de saúde em Portugal. Enquanto lei de valor reforçado (artigo 112.º, n.os 2 e 3 da CRP), desempenha um papel essencial, na medida em que configura um pressuposto normativo indispensável para outras leis, que a esta ficam subordinadas. Assim, do ponto de vista de recursos humanos e de especificidades em termos de matéria laboral, destacamos o seguinte:
i) o funcionamento do SNS baseia-se numa força de trabalho organizada para atender às necessidades assistenciais da população, promovendo mecanismos de dedicação plena ao exercício de funções públicas, estruturadas em carreiras, devendo ser garantidas condições e ambientes de trabalho promotores de satisfação e desenvolvimento profissionais e da conciliação da vida profissional, pessoal e familiar;
ii) quando o SNS não tiver, comprovadamente, capacidade para a prestação de cuidados em tempo útil, podem ser celebrados contratos com entidades do setor privado, do setor social e profissionais em regime de trabalho independente, condicionados à avaliação da sua necessidade;
iii) os profissionais de saúde têm direito a aceder à formação e ao aperfeiçoamento profissionais, tendo em conta a natureza da atividade prestada, com vista à permanente atualização de conhecimentos;
iv) todos os profissionais de saúde que trabalham no SNS têm direito a uma carreira profissional que reconheça a sua diferenciação na área da saúde;
v) o Estado deve promover uma política de recursos humanos que garanta: a estabilidade do vínculo aos profissionais; o combate à precariedade e à existência de trabalhadores sem vínculo; o trabalho em equipa, multidisciplinar e de complementaridade entre os diferentes profissionais de saúde; a formação profissional contínua e permanente dos seus profissionais.
Em 2022, também por forma acompanhar a LBS, foi publicado o Decreto-Lei n.º 52/2022, de 4 de agosto, que aprovou o novo Estatuto do Serviço Nacional de Saúde (Estatuto).
Decorre do Estatuto que os profissionais que trabalham no SNS estão sujeitos, em função da natureza jurídica do respetivo estabelecimento ou serviço, às regras próprias da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (…) ou do Código do Trabalho (…).
Podem ainda ser fixadas regras sobre carreiras, mobilidade, duração dos períodos de trabalho, pactos de permanência, defesa contra os riscos do exercício profissional e garantia de independência técnica e científica para os profissionais de saúde que são prestadores diretos de cuidados, que derrogam a lei geral.
Sem prejuízo da sua missão e da sua integração em carreiras próprias, os profissionais que trabalham no SNS incorporam um sistema específico e diferenciado que se pauta, em especial, pelos seguintes princípios:
i) adequação das carreiras e correspondentes profissões aos objetivos da política de saúde;
ii) garantia da equidade entre carreiras e seus profissionais;
iii) promoção de estruturas organizacionais e modelos de gestão que fomentem o trabalho em equipa focado na melhoria do estado de saúde de indivíduos e populações;
iv) valorização dos profissionais, baseada no mérito e no desenvolvimento das competências necessárias a modelos inovadores de organização do trabalho.
Por outro lado, o Estatuto permite a contratação excecional em situações como:
i) insuficiência de profissionais de saúde, permitindo a celebração de contratos de trabalho a termo resolutivo certo, nos termos da LTFP ou do Código do Trabalho, consoante o caso, pelo prazo máximo de seis meses, não renovável;
ii) substituição de profissionais de saúde temporariamente ausentes, permitindo a celebração de contratos de trabalho a termo resolutivo incerto, nos termos da LTFP ou do Código do Trabalho, consoante o caso;
iii) no caso de serviços e estabelecimentos de saúde integrados no setor empresarial do Estado, a celebração de contratos de trabalho sem termo, ao abrigo do Código do Trabalho, sempre que esteja em causa o recrutamento dos trabalhadores necessários ao preenchimento dos postos de trabalho previstos no mapa de pessoal e no plano de atividades e orçamento aprovados.
A par do elenco normativo já mencionado, o setor conta ainda com um número avultado de legislação avulsa, designadamente os diplomas que estabelecem e regulam as carreiras no âmbito das quais os profissionais de saúde desempenham as respetivas funções ou adquirem a formação necessária para o efeito.
Finalmente, é necessário contar com os instrumentos de regulamentação coletiva que resultam da negociação estabelecida entre os empregadores públicos ou entidades públicas empresariais com as associações sindicais e que definem o estatuto recíproco das entidades empregadoras e dos trabalhadores.
Organização do SNS
Os estabelecimentos e serviços do SNS são os seguintes: (i) os ACES; (ii) os hospitais, centros hospitalares, institutos portugueses de oncologia e as ULS, integrados no setor empresarial do Estado ou no setor público administrativo; (iii) o Instituto Nacional de Emergência Médica, I. P.; (iv) o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, I. P.; (v) o Instituto Português do Sangue e da Transplantação, I. P.; (vi) os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, E. P. E., na vertente de telessaúde; (vii) alguns estabelecimentos e serviços prestadores de cuidados ou de serviços de saúde do setor privado e social.
Do ponto de vista organizacional, o SNS é organizado territorialmente em cinco regiões de saúde e estruturado em três níveis de cuidados:
- cuidados de saúde primários – prestados pelos agrupamentos de centros de saúde (ACES);
- cuidados de saúde hospitalares – prestados nos hospitais, centros hospitalares e institutos portugueses de oncologia;
- cuidados continuados integrados.
Desde a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 54/2024, de 6 de setembro, a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) é responsável pela contratualização da prestação de cuidados de saúde a nível nacional e regional, sem prejuízo das competências das Unidades Locais de Saúde (as “ULS”) para contratualizar a prestação de cuidados de saúde nas respetivas áreas geográficas.
Ainda no setor público, por via de uma transferência de competências para os órgãos municipais e para as entidades intermunicipais no domínio da saúde, levada a cabo pelo Decreto-lei n.º 23/2019, de 30 de janeiro, foram transferidas competências de gestão, nomeadamente, a gestão dos trabalhadores, inseridos na carreira de assistente operacional, das unidades funcionais dos ACES que integram o SNS.
Atento o exposto, o direito do trabalho no SNS é marcado pela coexistência de diferentes regimes jurídicos e pela complexidade das relações entre os diversos agentes. A diversidade de fontes normativas, a diversidade de entidades empregadoras, de carreiras e de tipos de vínculos tornam este um tema em constante evolução e análise.
Nuno Abranches Pinto | Rute Gonçalves Janeiro