Teve eco na comunicação social um recente acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte que aborda um caso de assédio sexual que, apesar de comprovado nos autos agressões sexuais e verbais, concluiu que a conduta em causa não constituía a violação de qualquer ilícito típico criminal e, consequentemente, entendeu que havia uma aparente ausência de justa causa de despedimento. Esta decisão levanta sérias preocupações sobre a interpretação e aplicação das leis de proteção contra o assédio sexual, bem como sobre a mensagem que transmite à sociedade.
O caso envolve um professor do ensino superior público acusado de assédio sexual por parte de um conjunto de alunas e que foi despedido. O professor não negou, de uma forma geral, os factos que lhe foram imputados. No entanto, grande parte da discussão estava relacionada com o prazo de prescrição de um ano para o exercício do poder disciplinar. O empregador entendeu que os factos consubstanciavam a prática de um crime de coação e importunação sexual, daí que poderia aproveitar o seu prazo prescricional.
De acordo com o acórdão ficou provado o seguinte:
– que durante uma aula da UC de Ginástica do primeiro semestre do ano letivo de 2019/2020, o Requerente aproximou-se da aluna «BB», durante a realização de um exercício no qual tinha solicitado a execução de um pino, e deu-lhe duas sapatadas nas nádegas enquanto afirmou “tens que os ter mais contraídos”; repetiu este comportamento por duas vezes;
– que durante uma aula da UC de Ginástica do primeiro semestre do ano letivo de 2019/2020, o Requerente solicitou à aluna «CC» que realizasse o pino, sendo que na primeira tentativa da aluna, o Requerente lhe disse para fazer força abdominal enquanto lhe deu duas sapatadas no rabo e lhe disse “rabo duro, rabo duro”;
– que durante uma aula da UC de Ginástica do ano letivo 2019/2020, enquanto a aluna «CC» realizava uma espargata em contexto de avaliação, o Requerente afirmou em voz alta e perante toda a turma: “esta aluna vai ter mais um valor por me abrir as pernas”;
– que durante uma aula da UC de Ginástica do ano letivo 2020/2021, enquanto a aluna «GG» efetuava o pino a pedido do Requerente, este desferiu-lhe várias palmadas nas nádegas em frente dos restantes colegas da turma;
– que pelo menos nos anos letivos 2019/2020, 2020/2021 e 2021/2022, e nas aulas ministradas à turma da aluna «BB», e à turma da aluna «GG», era muito frequente o Requerente dar sapatadas nas nádegas das alunas.
– que pelo menos nos anos letivos 2019/2020, 2020/2021 e 2021/2022, nas aulas ministradas à turma da aluna «BB», era muito frequente o Requerente auxiliar as alunas a subir para as barras paralelas segurando-lhes as nádegas, isto apenas às alunas do sexo feminino;
– que nesses anos, era frequente o Requerente tecer comentários sobre o corpo e a indumentária das alunas;
– que em data não apurada mas situada entre os anos de 2019 e 2021, o Requerente dirigiu-se à aluna «BB» enquanto esta organizava os equipamentos do ginásio da ESE, e colocou à frente da aluna um top decotado e curto que havia encontrado no ginásio, enquanto afirmou que seria um prazer se a aluna participasse nas suas aulas com o peito à mostra.
Ora, alguns destes factos parecem corresponder à prática dos crimes acima mencionados. Todavia, não foi este o entendimento do Tribunal de Segunda Instância. Na verdade, resulta do acórdão que o tipo de expressões verbais utilizadas pelo professor, assim como a sua postura física para com as alunas visadas, não é passível de ser subsumido no tipo legal de crime a que se reporta o artigo 170.º do Código Penal. Por conseguinte, ainda de acordo com decisão, reportando-se os factos ilícitos a um período compreendido entre setembro de 2019 e junho de 2021 [rectius, a 29 de janeiro de 2022] tendo o processo disciplinar sido instaurado ao arguido por despacho do Presidente do IPP, datado de 19 de março de 2023, nesta data já tinha ocorrido a prescrição das infrações disciplinares assacadas ao arguido, por ultrapassagem do prazo de um ano a que se reporta o referido artigo 178.º, n.º 1 da LGTFP, e por não se ter interposto qualquer questão que por si fosse determinante da suspensão do prazo prescricional.
Assim, este acórdão pode estabelecer um precedente preocupante para futuros casos de assédio sexual, onde a palavra da vítima e as provas apresentadas podem ser insuficientes para garantir a aplicação de uma sanção disciplinar. É essencial que o sistema judicial reavalie como tais casos são tratados para garantir que as vítimas recebam justiça e que os agressores sejam responsabilizados por suas ações do ponto de vista disciplinar e penal. A proteção contra o assédio sexual deve ser uma prioridade, refletida tanto na letra quanto no espírito da lei.
A Equipa DCM| Littler