O trabalho desempenha um papel crucial na vida de todos nós, já que a maioria dos trabalhadores passa, pelo menos, oito horas diárias no local de trabalho. Durante esse período, podem estar expostos a diversos fatores como poeiras, gases, ruído, vibrações e temperaturas extremas, que afetam o bem-estar e influenciam tanto o desempenho individual quanto os resultados coletivos. Essas condições podem ter consequências negativas tanto para os trabalhadores quanto para a entidade empregadora aquando de uma longa exposição a esses fatores ou em situações de acidente.
Existe um número ilimitado de perigos que podem ser encontrados em quase todos os locais de trabalho, existindo, em muitos casos, uma exposição quase diária a estes fatores, como por exemplo químicos, máquinas, sem proteção que produzem demasiado ruído, a variações extremas de temperatura, a pisos escorregadios, não existindo por vezes a prevenção e proteção adequadas.
O conceito de segurança e saúde no trabalho envolve múltiplas dimensões e conhecimentos, com o objetivo de melhorar as condições de trabalho, alcançando-se tal desiderato pela eliminação ou redução dos riscos e suas consequências, por meio da implementação de programas de prevenção eficazes e da criação de estruturas adequadas para cumprir os objetivos estabelecidos por lei e pelas melhores práticas.
O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05 de dezembro de 2024 (Proc. 2505/19.0T8BRR.L1-4) oferece uma oportunidade relevante para reequacionar os contornos da responsabilidade do empregador no domínio da segurança e saúde no trabalho. No caso, um motorista de pesados, encarregado do transporte de gasóleo em cisterna, contraiu uma doença pulmonar grave. Alegou o trabalhador que a doença resultou da exposição contínua a vapores tóxicos libertados durante o processo de carga e descarga do combustível, processo que era feito sem o uso de qualquer proteção respiratória. O trabalhador intentou ação judicial contra a empresa peticionando danos patrimoniais e não patrimoniais, com base na violação culposa dos deveres legais de segurança.
O ponto jurídico fulcral em apreço na decisão prende-se com a natureza da responsabilidade em causa. A Relação sustenta que estamos perante responsabilidade contratual, por incumprimento do dever acessório de segurança que decorre do contrato de trabalho. Sublinha ainda o colendo Tribunal que, ainda que os acidentes de trabalho sejam tipicamente regulados pela LAT, tal não exclui a possibilidade de coexistência de um regime de responsabilidade contratual, desde que fundado em conduta ilícita e culposa do empregador. Até aqui, nada a apontar: esta via é bem conhecida na jurisprudência nacional.
Contudo, uma leitura mais atenta do acórdão levanta algumas questões:
A primeira prende-se com o conceito de ilicitude tal como utilizado pelo Tribunal da Relação. Na ótica do Tribunal da Relação exige-se que a conduta do empregador esteja em desconformidade com uma norma concreta e específica, seja legal, regulamentar ou convencional, nomeadamente uma que imponha expressamente a obrigação de fornecer máscara de proteção. Ora, esta abordagem levanta dúvidas: será necessário que cada medida de proteção esteja taxativamente prevista numa norma jurídica para que se configure o incumprimento do dever de segurança por parte da empregadora?
A obrigação de segurança consagrada no artigo 281.º do Código do Trabalho é, por natureza, de meios, não de resultado, mas isso não a esvazia de conteúdo concreto. A proteção eficaz da saúde dos trabalhadores exige uma avaliação de riscos contínua e adaptada às especificidades de cada função. No caso, porque não se demonstrou que a legislação aplicável ao transporte de mercadorias perigosas (ADR e Decreto Lei n.º 41-A/2010) exigia a utilização de máscara respiratória, afastou-se a responsabilidade. Mas mesmo que não se imponha expressamente o uso de máscaras respiratórias, a pergunta que se coloca é: não seria essa medida objetivamente exigível num contexto de exposição reiterada a vapores de hidrocarbonetos? Cremos que a ausência de previsão normativa específica não deveria ser interpretada como margem de discricionariedade, mas sim como imposição de uma análise técnica e preventiva por parte do empregador.
Além disso, a aplicação automática da presunção de culpa (art. 799.º, n.º 1, do Código Civil) é enunciada, mas esvaziada na prática. Se o trabalhador alegou os factos essenciais – ausência de equipamento de proteção, exposição a vapores nocivos, contexto profissional reiterado – não caberia ao empregador demonstrar que tomou todas as medidas adequadas, inclusive a avaliação de risco e a decisão técnica (documentada) de que a máscara não era necessária?
Por fim, importa refletir sobre a linha cada vez mais ténue entre exigibilidade normativa e prática prudente no seio das relações laborais. Consideramos que será de evitar cair numa espécie de positivismo regulamentar, que apenas reconhece a violação do dever de segurança se existir norma específica violada. Essa exigência pode ter um efeito perverso: deixar desprotegidos trabalhadores expostos a riscos reais, mas não expressamente previstos.
Em suma, consideramos que o Acórdão segue uma linha tecnicamente consistente, mas demasiado restritiva. Ao exigir um nexo quase literal entre a norma e a obrigação de proteção, enfraquece o princípio estruturante da prevenção. A obrigação de segurança não pode ser encarada como um catálogo fechado de deveres específicos, mas como um dever dinâmico, adaptável, e, sobretudo, orientado para a tutela efetiva da integridade física e psíquica dos trabalhadores.
Rui Rego Soares | Gonçalo Asper Caro